quarta-feira, 7 de abril de 2021

Moçambique :o colonialismo visto por um moçambicano

 Miguel OM de Brito : Head of Mission, Mozambique na empresa International IDEA ,Estudou em Universidade Joaquim Chissano - UJC

Vive em Maputo
(partilhei)
MIGUEL OM DE BRITO:
Há exatamente 8 anos publiquei o texto abaixo aqui no FB.
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Hoje alguém pediu-me para partilhar de novo. Então aqui vai.
Nenhum de nós é ou deve ser culpado pelos pecados dos nossos pais (ou antepassados). Não temos que carregar cruzes de pecados que não cometemos. No entanto, não devemos nem podemos, nesta rejeição da herança da culpa, apagar a realidade em que viviam os nossos pais e avós e em que alguns de nós também ainda vivem e os benefícios que disso tirámos ou ainda tiramos.
À data de independência de Moçambique, viviam em Moçambique cerca de 200 mil brancos de origem portuguesa. Muitos nascidos em Portugal, outros já nascidos em Moçambique e outros ainda descendentes de 2 ou 3 gerações também já aqui nascidas.
Se é verdade que nem todos maltratavam os negros, que muitos sentiam-se moçambicanos e não portugueses e que muitos lutaram, de várias formas, para pôr fim ao colonialismo, a grande maioria ou beneficiou diretamente do colonialismo ou, pelo menos, aceitou silenciosamente as práticas coloniais.
O bem-estar de que muitos brancos usufruíram e a riqueza que muitos brancos acumularam só foram possíveis graças às relações políticas, sociais e económicas que existiam entre a minoria branca e a maioria negra. Se em Moçambique não houve apartheid formal, a separação das raças estava institucionalizada a todos os níveis: nas zonas residenciais, no acesso à educação e à saúde, no acesso aos serviços e ao emprego.
Só para dar um pequeno exemplo: durante os 5 anos que frequentei a escola Rebelo da Silva (hoje 3 de Fevereiro), onde fiz o ensino primário, de 1969 a 1974, só havia 2 alunos negros: o filho de um dos serventes da escola e o filho da nossa empregada, que para poder matricular-se naquela escola teve que ser apresentado como membro do nosso agregado familiar. Naquela altura, cada um tinha que ir à escola no bairro onde vivia e, como na Polana inteira só viviam brancos, a escola era o reflexo disso...
Quem achar que isto é um exagero é só consultar as centenas de álbuns fotográficos da época, que tantos orgulhosamente têm compartilhado aqui na internet, e ver quão branca era a vida social e económica de Moçambique na época. Ou ler os relatos do trabalho forçado, das palmatoadas, dos insultos racistas, etc, etc.
Entre 1974 e 1976, mais de 90% dos brancos residentes em Moçambique abandonaram o país. O mesmo aconteceu nas outras colónias portuguesas. A esmagadora maioria foi para Portugal e constituíu a chamada comunidade dos retornados. Outros foram para a África do Sul e para o Brasil.
Desde essa altura até hoje, desenvolveu-se e cristalizou-se uma "narrativa retornada" sobre a vida colonial e sobre o período 1974/75. É uma narrativa ao mesmo tempo romantizada e amarga, saudosista e reivindicativa, seletiva e manipuladora. O principal fio dessa narrativa, independentemente de se aplicar a Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau, é que os brancos nas colónias desenvolveram e civilizaram as colónias, criaram e deixaram riqueza, trataram bem os pretos e tiveram que fugir porque os pretos (comunistas) os iam matar e roubar.
O outro fio entrelaçado desta narrativa é sobre a boa vida das colónias, onde todos tinham casas grandes, muitos criados, praias, boa comida, o Sol, etc. Esta é sobretudo uma narrativa falaciosa, cega e filtrada. A vida de uns só era boa porque a vida da maioria era francamente má. Esta é uma correlação indissociável. Os negros nunca foram vistos como mais do que seres subordinados, por vezes "acarinhados", na maior parte das vezes humilhados e violentados na sua dignidade humana.
Falam muito dos prédios que cá deixaram. Mas não dizem para quem esses prédios foram construídos e a quem esses prédios eram reservados. Os primeiros e pouquíssimos negros a viverem, por exemplo, no bairro da Polana em Lourenço Marques – o meu bairro - só o conseguiram fazer já nos anos 70 e um deles – que se tornou um alto dirigente de Moçambique independente - só o conseguiu através de um estratagema, porque quando o senhorio via "a fuça dum preto" recusava-se a alugar o apartamento, apesar do tal preto ter feito os estudos superiores em Portugal e ser “senhor doutor”! Já agora porque não falam da quantidade de licenciados negros que cá deixaram? Um país não se desenvolve com prédios, mas sim com quadros. Mas deixaram cá 1000 vezes mais prédios do que negros formados! Por que será?
Esta frase que encontrei num depoimento de um retornado é ilustrativa do pensamento dessa época e que está subjacente a toda a "narrativa retornada": "o branco com seu espírito empreendedor e conhecimento técnico, o negro como trabalho braçal".
É exatamente essa correlação e essa relação entre brancos e negros na sociedade colonial que a "narrativa retornada" ignora e rejeita. Esta narrativa tem sido reproduzida de pais para filhos, de geração para geração, ao ponto de influenciar os que nunca cá viveram, nem são descendentes de quem cá viveu.
Hoje é comum ouvir: eu também sou moçambicana, também lá nasci e hoje estou de volta para ajudar esta terra que me viu nascer. A pergunta que falta fazer e dar-lhe uma resposta honesta é: o que levou a sua família a abandonar Moçambique em 1974/75?
A honestidade da resposta a esta pergunta é crucial para começarmos a curar os pecados do colonialismo e o veneno da "narrativa retornada". A verdade é que a esmagadora maioria dos retornados de Moçambique abandonou o país porque não queria ser "governada por pretos"! Porquê? Aqui encontramos uma mistura de racismo, medo de represálias (se eram todos tão bons para com os pretinhos, tinham medo de quê?) e pavor do chamado comunismo. A resposta mais usada em geral é que os "turras" iam "matar-nos e violar as nossas mulheres, por isso tivemos que fugir e deixar tudo para trás".
Um outro “episódio escolar” – este já de 1976 – ilustra esta narrativa do “medo dos pretos e dos comunistas” (o apartheid até arranjou uma versão na sua literatura estratégica: o “swart gevaar”, irmão gémeo do “rooi gevaar”): em 1976, estudava na então escola preparatória do ensino secundária D. Ana da Costa Portugal (hoje parte integrante da Escola Secundária Josina Machel), na 6ª classe. Havia 6 turmas da 6ª classe e cada uma tinha cerca de 30 estudantes. Esse foi o ano das nacionalizações – sobretudo dos prédios de habitação - e o ano do boato que a Frelimo ia nacionalizar todas as crianças (lembram-se da velha história de que os comunistas comiam crianças ao pequeno-almoço?!). Resultado: chegámos ao fim do ano escolar com cerca de 30 estudantes no conjunto das 6 turmas – a minha ficou com apenas 6 estudantes. O resto debandou para Portugal.
A História mostra quão isto é falso. Talvez tenham ficado em Moçambique uns 20 mil brancos de origem portuguesa. Muitos tornaram-se ministros, diretores nacionais, diretores de escolas, diretores de hospitais, diretores de empresas, etc. Este não é, de certo, um quadro de vingança, retaliação, perseguição. Aliás, este "acarinhamento" dos "brancos que ficaram" veio criar problemas à liderança da FRELIMO, mais tarde, mas isso são outros quinhentos.
Posto isto tudo, vamos ser honestos: se os que agora chegam (ou regressam), não têm culpa dos que os seus antepassados fizeram, pelo menos reconheçam o que eles fizeram, que deixaram cicatrizes, que nunca reconheceram o mal que fizeram e que, pelo contrário, até hoje acham-se injustiçados e incompreendidos. Sem isso, nunca haverá reconciliação. Pois é da necessidade de reconciliação com o passado e com a história que se trata.
(Pintura a giz colorido, feita por mim, em Bissau em 1987)
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