domingo, 29 de agosto de 2021

RECRIAR ABRIL 23.04.2021

 Recriar ABRIL

Sonho, luta, renovação e esperança…recriar Abril. Travar as crises. Foi paradoxalmente, com os conhecimentos adquiridos na guerra colonial e com a riqueza da revolução cultural dos anos sessenta, que nós, capitães, soubemos preparar com profissionalismo e competência a tomada do poder, em Portugal e também na Guiné, a 25 de Abril de 1974.A adesão popular transformaria estes actos na gloriosa REVOLUÇÃO DOS CRAVOS. Hoje, passados quarenta e sete anos, o Portugal Democrático não tem nada a ver com o Portugal da ditadura. Não confundamos os males de então com os dias extremamente difíceis de “hoje”, que já o eram “ontem” e têm vindo a sê-lo, há tantos, destes anos. Alguns desesperados desabafam: “está tudo como dantes”...”está tudo na mesma “! Não o devem repetir. Isso significa comparar tempos e agonias diferentes. Branquear o fascismo. Sobretudo não devemos fazê-lo pelos mais novos e por quem não viveu o triste passado dum regime, caduco e atrasado, que prendeu as nossas liberdades e consciências e definhou, gravosamente, o nosso desenvolvimento social, cultural e económico. Os desencantos de hoje e respectivas frustrações nada têm a ver com a 25 de Abril. Têm raízes antigas…às quais, fruto duma coligação de interesses, outras se vieram juntar, no país e no globo, que: Resultam da essência e natureza dum sistema predador: -esse sistema tem um nome e anda a monte. -chama-se: “capitalismo”, mascarado de neo-liberalismo, de ultra-liberalismo global…ou de outra exuberante alcunha. Os fautores das sucessivas e recentes crises pretendem agora desmontar um arsenal ideológico de embustes, de adulteração de palavras, de subversão e ilusão de conceitos. Com as governanças da direita, com a governação socialista tímida e agarrada a UE, com a ascensão demagógica da extrema -direita, com a manipulação e mentiras diárias dos OCS, na mão de poderosos e traidores. Sobretudo de ilusão de realidades…dum sacudir de responsabilidades e reverter ainda em benefício próprio as razões que lhe estão na origem! A crise é só de há poucos anos? Claro que não. Ontem e Hoje terá chegado também aos poderosos, mas há muito tempo que a vivemos. Há anos que vimos afirmando que o sistema gera desumanas situações sócio-económicas, com uma aparente e ilusória contrapartida de progresso económico, onde os ricos tem ficado cada vez mais ricos e os pobres, cada vez, mais pobres. Há muito que a economia social foi estrangulada e a vertente financeira (especulação) se sobrepõe à vertente produtiva (economia real). Essa é a crise …mas é só uma das suas faces (também há crise no saber, no conhecimento, na cultura…) como sair dela?” Recriando o espírito de Abril de 1974 poderemos travar a crise? Como? É o desafio! Duran Clemente. Capitão de Abril ontem, hoje e sempre.
Madalena Brito, José Zaluar e 34 outras pessoas
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Entrevista ao JFundão 28.08.2021

 

Nasceu em que ano? Quantos anos tinha aquando do 25 de Abril?

 

Nasci em 28 de Junho de 1942,em Almada, na quinta duma tia que criou a minha mãe, ambas da Galiza. O meu pai António dos Santos Clemente, nascido em 1915 na Capinha/Fundão, chegou a Capitão  ,progredindo numa carreira militar de excelência.

 

No 25 de Abril de 1974 eu tinha 32 anos e dois filhos.

 

Que ligações tem à Beira Interior?

 

Como já referi o meu pai nasceu na Capinha,filho de pais ligados ao campo/agricultura e era o único homem irmão de quatro filhas dos meus avós.Três, dessas minhas tias,sempre viveram na Capinha,Peroviseu e Fundão.Outra em Lisboa.

                                                                                            

Que memórias tem aqui na Beira da sua infância?

  Vivi desde os dois anos e até aos onze na vila de Penamacor, onde o meu pai prestou serviço militar e onde viveu quinze anos. Com a família perto eram frequentes os contactos ,com avó, tias e primos, com muitas idas, sobretudo, ao Fundão,Capinha,Covilhã e Castelo Branco.

 Frequentei a Escola Primária desde 1948 a 1952,passei com distinção a quarta classe e o exame de admissão ao Liceu de Castelo Branco e ainda o mesmo ao colégio interno dos Pupilos do Exército, onde entraria em 1953,após um ano de espera. As férias de Natal e Páscoa e parte das férias de Verão passei-as sempre com os meus pais, em Penamacor e Águeda(2 anos) até 1960.Ano em que meus pais se deslocaram   para S.Tomé e Principe, comissão de serviço de meu pai, já então Alferes, e onde estive com eles nas férias de Verão de 1960,meses antes de ingressar na Academia Militar.

Relativamente à minha infância e juventude na Beira Interior tenho as mais vivas e belas recordações, não só dos passeios pelas suas belas terras,das suas tradições festivas do Natal e Páscoa, como dos Santos Populares e ainda das romarias da Senhora da Póvoa/Penamacor, Senhora do Incenso/Penamacor  e de Santa Luzia/Fundão. Numa iniciativa do Jornal do Fundão recordo que em 1961,com um conjunto de 20 jovens estudantes(rapazes e raparigas), trajados a preceito, embelezámos dois carros de bois, com palmeiras e flores, para a romaria de Santa Luzia e recebemos o primeiro prémio, como constará nos arquivos do J.F..

  Esteve envolvido nos preparativos da Revolução do 25 de Abril? Como viveu o dia? Qual a sua missão? Teve receio que o golpe falhasse?

 

Falarei por mim,certo de que todos os “militares de Abril” tiveram o seu percurso.Comecei muito cedo e, já na Academia Militar, a maioridade da minha formação politica vinda de contactos anteriores com um grupo de amigos de estudantes liceais e universitários. Fui o primeiro classificado dos meus cursos, quer nos Pupilos do Exército, quer na Academia Militar. Já na Academia Militar me tinha manifestado contra o regime e foi o meu bom “curriculum” escolar anterior que terá evitado a expulsão. Após regresso  da minha primeira comissão em Moçambique (1969 e 1970) iniciei contactos, entre os quais com militares do meu tempo, e tive das primeiras reuniões com capitães de Engenharia onde estava colocado (Direcção da Arma de Engenharia) com vista a alterar a situação política. Estive no 3º Congresso da Oposição Democrática, com mais alguns militares (todos nós clandestinos). As entidades militares tiveram conhecimento dessa minha participação e bem assim dum documento que lhes apresentei como censura da guerra e da situação opressora no país. Tal facto levou a que fosse antecipada a minha ida para mais uma comissão em Julho de 1973 e para a Guiné –Bissau. A realidade é que,em Bissau,onde viria a ser segundo comandante do Batalhão de Intendência da Guiné, me juntei a alguns capitães que já tinham a ideia de sensibilizar camaradas seus ,sobretudo capitães, para que se actuasse. A ideia lançada de que a “revolta dos capitães” começou na Guiné não merece discussão. Têm tanta razão os que a defendem como os outros. A revolta começou em cada um de nós, o espaço não foi temporal nem fisicamente circunscrito a uma qualquer latitude, mas  de facto a Guiné marcou muito os militares e era ressonante o seu efeito como um vulcão de conflitos e desafios.

Efectivamente na Guiné viviam-se tempos favoráveis à  reflexão e ao debate. De forma mais aberta ou mais  reservada a contestação convivia com a humidade e o calor tropicais. As  circunstâncias fizeram o resto; tornaram a colónia da Guiné um laboratório de experiências e de vivências  particulares. Muito pelo seu clima, muito pelo seu tamanho, muito pelo abandono do colonizador e bastante pela forma de actuação do PAIGC e do seu líder Amílcar Cabral, cujo pensamento nos apaixonou e guiou a partir de certa altura
.

Graças à publicação do celebérrimo Decreto-Lei nº. 353/73 que facultava a “entrada de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente (nas três armas Infantaria, Artilharia e Cavalaria) através de curso intensivo na Academia Militar os acontecimentos precipitam-se. A questão era saber aproveitar o facto. Assim o fez o grupo dinamizador que eu integrei com os capitães Otelo Saraiva de Carvalho, Jorge Golias, Carlos Matos Gomes, Sousa Pinto, Jorge Alves e José Barroso (este miliciano).Decidiu-se por escrever uma “exposição-protesto” ao Presidente da República, Presidente do Conselho, Ministro da Defesa e Exército, Ministro da Educação e   Secretário de Estado do Exército.

Estava pois criado o ambiente e lavrado o terreno para o que viria a seguir.

O grupo de trabalho, encarregado de escrever o texto da mesma, foi constituído pelo recém-promovido Major Almeida Coimbra, Capitães Teixeira Branco, Duran Clemente e Matos Gomes. Assim se iria, com uma assinatura colectiva, afrontar os regulamentos.

Havia que explorar com sucesso o” tremor de terra “ que tal diploma causou no seio dos capitães. E assim foi. O núcleo entrou em acção. Promoveram-se reuniões. Espalhou-se a palavra para os Capitães reunirem no Clube Militar. Com a data de 28 de Agosto a referida  “Exposição”  teve as  assinaturas de quarenta e seis Capitães, recolhidas em Bissau e nas guarnições próximas (em 66 capitães possíveis em todo o território), às quais se juntaram ainda as de  quatro Tenentes (em estágio). De notar que os oficiais subscritores eram de todas as armas e serviços. O documento e cópias foram enviados, por mão própria,  (capitão Ayala Botto), reforçando o envio por correio registado, para os destinatários. Igualmente nos encarregámos  de comunicar aos Capitães, em serviço no interior, o seu conteúdo e explicar-lhes a atitude do protesto  colectivo, como afirmação frontal do nosso descontentamento.

A este propósito no seu livro “Alvorada em Abril” é com oportunidade que Otelo escreve: “ Esta autêntica manifestação colectiva poderia ter constituído um sério sinal de alerta para o Regime “ e dizendo ainda “ os jovens leões rugiram, mansos, a princípio. Ganhando consciência da sua força, foram deitando as garras de fora e, rugindo mais forte, lançaram-se ao ataque. A partir daí, quem poderia realmente travar o seu desenfreado galope?”.

Em Setembro, é eleita a primeira  Comissão  do Movimento de Capitães , na Guiné (e que daria o nome ao Movimento), constituída por Duran Clemente,  Matos Gomes  ,Almeida Coimbra e António Caetano ( que mais tarde seria substituído por Sousa Pinto, o quinto mais votado).

Certamente impulsionados por nós, reuniram-se em Portugal, em 9 de Setembro, num monte alentejano em Alcáçovas/Èvora,136 oficiais do Exé  rcito (95 capitães,39 tenentes e 2 alferes)e dali saiu outra “exposição-protesto” com as assinaturas de todos estes militares e dirigida ao Presidente do Conselho.

 Na Guinè houve que alargar o movimento aos capitães da Armada e da Força Aérea missão de que se encarregou a Comissão do Exército de que eu fazia parte. Passaram a integrar a Comissão os Primeiros Tenentes Marques Pinto e Pessoa Brandão e os Capitães Faria Paulino e Jorge Alves.

 Nos  primeiros meses de 1974 é de assinalar o seguinte e de forma resumida: estreitaram-se os contactos com Lisboa. Em Fevereiro Duran Clemente, vem a Lisboa para contacto com Vasco Lourenço em serviço numa unidade na Trafaria (Bat.Art).Nesse encontro foram actualizados os conhecimentos das situações. Mas da Guiné vinha um aviso firme dos seus capitães “…ou as coisas se resolvem em Portugal e depressa ou nós, capitães na Guiné, que temos tudo preparado para tomar conta da colónia, o faremosEstamos mais que impacientes…não vamos depor as armas. Há vidas a defender. Mas tomaremos o poder e negociaremos…com quem for preciso”. Era sabido que o pessoal na Guiné estava com acentuado nervosismo, embora consciente mas impaciente, e isso tinha sido claramente dito por Salgueiro Maia que, em Outubro antes, regressara a Lisboa e fora colocado em Santarém. Vasco Lourenço apelou para que tivéssemos serenidade e afiançou que a “acção” se daria antes do 10 de Junho. Foi esse o recado do Movimento de Capitães no continente que o mensageiro trouxe para o Movimento na Guiné.

Em 4 de Março avisamos Lisboa de que os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monge regressavam à metrópole no dia seguinte e estavam cheios de algum voluntarismo. Denotavam extrema vontade de intervir. Haveria que dar o melhor enquadramento à sua dinâmica. Ouve distração do nosso aviso ( já com Vasco Lourenço nos Açores) e ocorreu o 16 de Março.

Fomos recolhendo informações e sensibilizando os novos oficiais capitães que foram chegando e até outras patentes de oficiais dos três ramos. Entretanto em todas as unidades (quarteis) fomos nomeando representantes dos capitães, dos sargentos e dos praças, como nossos delegados. Em caso de necessidade  todo o CITGuiné estava nas nossas mãos.Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa como aconteceu com o General Comando –Chefe e outros por nós interpelados, no dia 26.

 Qualquer eventual golpe nosso, na Guiné, não falharia se o golpe no continente falhasse. Mas é verdade que sempre acreditamos no sucesso dos camaradas em Portugal com a aprendizagem do falhado e precipitado: 16 de Março.

                                                                                     

Quais as principais memórias desse dia?

 Nós, membros da Comissão, soubemos dois dias antes que a acçâo em Portugal seria na madrugada do dia 25 de Abril. Nessa madrugada aguardámos (Major Monção Fernandes, chefe do CHERET, Duran Clemente e Faria Paulino) no Centro de Comunicações do Q. G, de Bissau. O contacto telefónico programado com Lisboa,não chegou. Uma das poucas acções de retaliação da dita “Legião Portuguesa” foi o corte do cabo telefónico -na Rua de S.Marçal -  que servia a Guiné. No meio da nossa ansiedade fomos sabendo do que se passava através das agências noticiosas, France Press, Reuter e outras. Pouco a pouco as  tele-impressoras foram ditando os acontecimentos e noticiando a “Alvorada de Abril” em “inglês”, ”francês” e “português”. Exultámos. Pelas oito horas da manhã foram restabelecidos os contactos com Lisboa. Imediatamente comunicámos a toda a nossa Coordenação o sucesso.

Aos nossos homens do Movimento colocados em todas as guarnições da Guiné, e que estavam há dias alertados, foram dadas pela Coordenação de Bissau a indicação de transmitirem aos comandantes que ou aceitavam a nova “ordem nacional” ou eram imediatamente substituídos. O poder na colónia era já, e a partir daqui, do MFA da Guiné. Os contrariados, não aderentes “marcharam” para Bissau. Embarcariam para Lisboa de avião, dias depois.

De Bissau partimos aos quatro cantos da colónia para explicar aos militares o ponto de situação e consolidarmos a manutenção da disciplina e das novas hierarquias tendo por base as delegações do MFA.Fui numa dessas missões.

 Que avaliação faz do percurso da democracia nestes quase 50 anos?

 Uma avaliação positiva. Para começar, sobretudo nos cinco primeiros governos provisórios, foram aprovados cerca de duzentos Decretos-lei que consubstanciavam as grandes conquistas prometidas no nosso Programa Politico do MFA. Democratizar, Descolonizar e Desenvolver foram os grandes objectivos  plasmados na Constituição da Republica em 2 de Abri de 1976.

O Portugal de hoje nada tem a ver com o Portugal do antes do 25 de Abril, mesmo tendo em conta que muito falta fazer ,não esquecendo as bases fraquíssimas de democracia e de desenvolvimento herdadas da ditadura. Com elas o obscurantismo e a manipulação do conhecimento continuaram a atormentar-nos. Infelizmente a forte tendência mercantilista, que foi apanágio da nossa colonização, pouco nos deu em certos sectores e principalmente na indústria. Há no entanto excelentes esforços feitos nos últimos quase 50 anos. As taxas de analfabetismo eram de cerca de 40% e passaram para valores de cerca de 3%,a taxa de mortalidade infantil passou de 38 por mil para cerca de 3 por mil. Institucionalizou-se o Serviço Nacional de Saúde e da Educação Democrática. Lares sem luz passaram de 36% para 0,3%.Lares sem água e saneamento básico de 53% para 1,5%.Eleições livres. Salário mínimo e pensão social. Direito à greve. Subsidio de férias e de Natal, este também para os reformados. Devolução dos baldios. Direito ao divórcio nos casamentos católicos. Direitos, liberdades e garantias e tantas outras melhorias no espaço cultural,material e de infraestruturas.

Há cerca de um mês visitei Castelo Branco,Belgais, Penamacor,Lardosa, Unhais da Serra,São Miguel dÁcha,Fundão,Belmonte,Sortelha e Sertã fiquei maravilhado com os seus progressos.

  Como vê o crescimento de alguns extremismos no mundo da política atual?

 Vejo com muita inquietação este crescimento dos extremismos. Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional, que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os mais desfavorecidos e descontentes. Saber mais e melhor é preciso para distinguir oportunismos assaz perigosos..

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Entrevista com Coronel Manuel Duran Clemente,Capitão de Abril e agraciado elo P.R. com a Ordem da Liberdade,grau Grande Oficial, no passado dia 19 ,com mais 25 militares empenhados na conspiração e acção para o 25 de Abril de 1974.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

As duas revoluções de Sita Vales

 

As duas revoluções de Sita Valles

A sua curta vida apresenta todos os ingredientes de uma tragédia grega. A militante que se entregou sem rodeios às revoluções portuguesa e angolana foi devorada por esta última. Pior ainda, o seu nome tornou-se maldito em ambos países. Nenhum argumento pode justificar que se lhe retire o direito à memória. Recordemo-la, pois.

Por Luis Leiria 22 de Maio, 2017

Sita Valles viveu duas revoluções com a intensidade e a entrega que só as convicções muito fortes podem proporcionar. Em pleno “Verão Quente” de 1975, trocou a portuguesa pela angolana, porque achava que era no seu país natal que mais falta fazia. As revoluções, porém, são cruéis, pois frequentemente devoram os seus próprios filhos. Numa data indeterminada, entre julho e agosto de 1977, Sita foi fuzilada em Angola por ordem daqueles que pouco tempo antes chamava de “camaradas”. Tinha apenas 25 anos.

A sua curta vida tem todos os ingredientes de uma tragédia clássica. Nesta, o herói experimenta uma mudança de fortuna, passando da felicidade ao infortúnio, e essa reviravolta leva-o à destruição não por ser vil, mas por cometer algum grave erro. Um erro que se explica pela dificuldade de enfrentar enigmas cujo duplo sentido fica por decifrar. Estas características da tragédia grega, estabelecidas por Aristóteles, estão todas presentes na história de Sita Valles, que tinha nome de deusa hindu (Sita) mas teve o destino dos filhos de Cronos, devorados pelo pai.

O autor desta reportagem passou os dois últimos meses a tentar decifrar alguns enigmas na vida de uma militante que todos concordam em dizer que era determinada, apaixonada, generosa. Mas para decifrar o enigma Sita é preciso compreender as entranhas do episódio ocorrido a 27 de Maio de 1977 em Angola. Depois de ouvir o testemunho de muitas pessoas, ler milhares de páginas de textos e livros, e até localizar documentos praticamente inéditos, ou pelo menos pouco conhecidos, a minha visão é diferente da que tinha à partida e, acredito, mais próxima da verdade.

Uma convicção, porém, não foi abalada. A de que Sita Valles tem direito à memória. Que o seu nome tem de deixar de ser tabu no partido que ela escolheu para expressar o seu inconformismo. O mesmo partido que, na “hora H”, não mexeu um dedo para defendê-la. Passaram-se 40 anos. O modelo de sociedade pelo qual Sita, Nito Alves e José Van Dunem lutavam, desmoronou com o muro de Berlim. A Guerra Fria deixou de existir, por mais que os saudosistas tentem hoje recriar, de forma caricatural, a mesma bipolaridade daqueles tempos. Não há táticas, não há interesses estratégicos que justifiquem o tabu sobre o nome maldito.

Infância confortável

Sita Valles adolescente: campeã de natação

Sita Maria Valles nasceu em 23 de agosto de 1951 em Cabinda, enclave de Angola situado a norte do território angolano. Os pais, o engenheiro agrónomo Edgar Francisco e a tradutora e professora Lúcia, tinham chegado de Goa, recém-casados, em 1949. Edgar Francisco, funcionário público muito dinâmico, ocupava-se da organização do território de culturas, do controlo de pragas, de planos de irrigação, deixando sempre a sua marca por onde passava. Em Cabinda nascera no ano anterior o irmão mais velho de Sita, Ademar, e o irmão mais novo, Edgar, já nasceria, em 1953, em Silva Porto (atual Cuíto), na província do Bié, destino seguinte da família Valles.

O casal e os três filhos passariam ainda dois anos em Benguela, antes de se estabelecerem em Luanda, onde foram viver numa moradia situada em pleno parque agrícola dos Serviços de Agricultura e Florestais, a que os Valles chamavam “a floresta”.

Os irmãos Valles tiveram uma vida confortável, típica da classe média colonizadora, embora o pai fosse muito rigoroso e austero. Apesar de morarem perto de um colégio particular frequentado pelos filhos da elite luandense, os três irmãos Valles cursaram o ensino público, passando pelo Liceu Salvador Correia, e Ademar e Sita tornaram-se grandes nadadores no Clube Desportivo Nun’Álvares, situado na ilha de Luanda.

A ilha, uma estreita língua de terra com sete quilómetros de comprimento que separa a cidade de Luanda do Oceano Atlântico, criando a Baía de Luanda, era também o lugar favorito para frequentar a praia. Já adolescente, Sita passeava no barco do seu primeiro namorado, acompanhada de amigas, mergulhando no mar ao largo. Era muito bonita, e no liceu partia os corações dos rapazes.

Universidade de Luanda

 

Terminado o ensino secundário, chegou a momento de escolher o curso universitário. Ademar optou por engenharia eletrotécnica, Sita preferiu medicina e Edgar, direito. Os dois primeiros matricularam-se na Universidade de Angola, que começara a funcionar apenas em 1962; antes disso, quem queria frequentar um curso superior tinha de ir para a metrópole. O ensino superior angolano nasceu como Estudos Gerais Universitários de Angola, com cursos nas cidades de Luanda, Nova Lisboa (hoje Huambo) e Sá da Bandeira (Lubango). Só em 1968 os estudos gerais passaram a Universidade de Luanda. Nesse mesmo ano, Sita começa a estudar na Faculdade de Medicina. Dizem as estatísticas que, nesse ano, estavam matriculados nos três pólos da Universidade 1.252 estudantes, o que mostra bem até que ponto “o acesso ao ensino superior destinava-se somente a quem integrava as camadas superiores da hierarquia social”1.

Mas, em 1970, o irmão mais novo Edgar foi para Lisboa estudar Direito (não existia esse curso em Luanda) e Sita decidiu acompanhá-lo, até porque o colega de curso e namorado José Camisão já tinha resolvido prosseguir os estudos na metrópole. Foi fácil convencer os pais, argumentando com a melhor qualidade do ensino em Lisboa. Assim, Sita Valles chegou a Lisboa no segundo semestre de 1971. Na rapariga de 20 anos, essa mudança marcaria uma viragem decisiva na vida: a jovem despreocupada, alegre e namoradeira, transformar-se-ia numa militante irredutível e apaixonada.

Na luta estudantil

A universidade de Lisboa fervilhava de atividade política nesses anos. Morto Salazar, já todos tinham claro que a possibilidade de uma Primavera Marcelista que desbloqueasse a sociedade portuguesa estava comprometida pela intransigência do presidente do Conselho em relação à guerra colonial. Um conflito bem presente em todos os jovens estudantes que tinham a garantia de serem mobilizados se reprovassem na faculdade ou logo que terminassem o curso.

“Foi um período extraordinariamente revolucionário, no sentido de que se aproximavam transformações, não se sabia bem como, mas isso estava no ar, quer pela guerra colonial, quer pela luta estudantil, pelas liberdades, pelo direito de associação, pela liberdade de expressão. Estava no ar que qualquer coisa havia de suceder”, recorda ao Esquerda.net o hoje advogado e escritor Domingos Lopes. Ele mesmo foi produto dessa situação: a chegada a Lisboa no mesmo ano que Sita Valles foi motivada pela expulsão da Universidade de Coimbra – onde fora dirigente da Associação Académica – depois de ter sido preso.

“O irmão da Sita”

A chegada de Sita foi como um furacão. O irmão Edgar recorda que entrou de imediato, ao chegar a Lisboa, na atividade associativa e partidária, esta última na União dos Estudantes Comunistas (UEC). “Quando a Sita chegou no ano seguinte, para cursar medicina, ela era a irmã do Edgar. Mas passados três ou quatro meses, eu era o irmão da Sita!”

Lista para a AE de Medicina 72/73: Sita Valles era candidata ao Conselho Fiscal; João Semedo está na lista para a direção, em baixo à direita

A politização da jovem estudante começara ainda em Luanda, onde chegara a fazer reuniões com um grupo maoísta. Mas a atividade não passara de grupos de discussão e pouco mais. Entretanto, conhecera o também estudante de medicina José Manuel Jara, que a trouxe para a lista que os unitários, o nome da corrente estudantil animada pela UEC, estava a apresentar para as eleições da direção da Associação da Faculdade de Medicina. Recorde-se que nesta época as organizações clandestinas que atuavam no movimento estudantil faziam-no através de correntes que eram consideradas “semilegais”. Não se podia mencionar, mesmo nas reuniões do movimento, o nome de partidos clandestinos, sob pena de se ser imediatamente acusado de “provocador”.

A lista venceu as eleições, e Sita mergulhou de cabeça na atividade associativa de uma das mais poderosas associações de estudantes do país, e também na militância político-partidária, deixando para trás os textos de Mao Tsetung e adotando a União Soviética como o seu modelo de sociedade.

“A Sita tinha de facto carisma. Isso via-se nas reuniões de estudantes que se faziam na época. Ela distinguia-se pela capacidade organizativa e de liderança, e além disso era bonita. Por tudo isto, dava muito nas vistas”, orgulha-se o irmão Edgar.

Foram tempos de muita agitação e ação. Os debates políticos faziam-se nos meetings, reuniões convocadas para debater questões como a guerra colonial, a luta pelas liberdades democráticas ou mesmo as propostas para derrubar o regime ditatorial. Algumas palavras-chave eram decisivas para quem queria identificar as posições ideológicas por trás dos discursos. “Revolução democrática e nacional”, por exemplo, era o mote do PCP, “Revolução Democrática-Popular” a proposta dos maoístas, e “Revolução socialista” a dos trotskistas, que só tinham começado a organizar-se depois da greve estudantil de Coimbra de 1969, inspirados pelo Maio de 1968 em França.

Anos rebeldes

O maior ativismo, porém, era na luta contra o salazarismo-marcelismo dentro das Universidades. E o ano de 1972 foi particularmente agitado: exames em Direito boicotados, greves na Faculdade de Agronomia e no Instituto Comercial, encerramento da associação de estudantes de Direito e da Pró-Associação de Letras, boicote aos exames no Instituto Superior Técnico, que acabou fechado e cercado pela polícia. Em maio, uma concentração no Técnico foi reprimida por cerca de 200 polícias de choque com metralhadoras e cães, e a polícia invadiu Económicas onde se realizava uma reunião de estudantes para decidir o que fazer. Fechadas também as associações do Técnico e de Económicas, a de Medicina permaneceu com um dos baluartes.

Foi também o ano da introdução dos “gorilas” nas Faculdades, contínuos-vigilantes antigos pára-quedistas, fuzileiros navais, comandos, ‘pides’, todos corpulentos tipo ‘três metros de altura por um de largura’ e com a função exclusiva de policiar a faculdade.

 

Funeral de Ribeiro Santos

E foi sobretudo o ano do assassinato do estudante José António Ribeiro dos Santos, militante do MRPP, em Económicas, por um agente da Pide, que marcaria o movimento estudantil até o 25 de abril.

No meio desta agitação, Sita Valles firmou-se como dirigente associativa e política.

“Era uma pessoa brilhante, apaixonada, convicta das suas ideias. Era uma dirigente incontornável para todos os estudantes do movimento estudantil. Era uma dirigente capaz, conhecedora dos temas, corajosa, que se entregava à causa em que acreditava e lutava por ela”, afirma Domingos Lopes, que conviveu com ela cerca de quatro anos.

Já em 1973, nas idas e vindas das mobilizações estudantis, chegou a vez de a Polícia invadir a associação da Faculdade de Medicina, e a sua “secção de folhas”, uma enorme tipografia responsável por imprimir as “sebentas”, isto é, os apontamentos que os docentes distribuíam aos seus alunos. Quando a polícia chegou, de noite, um estudante barricou-se no interior e enquanto os polícias eram forçados a abrir a porta blindada com um maçarico, o jovem queimava todo o material clandestino que se encontrava no interior. Em represália, a polícia não encontrou melhor coisa a fazer do que emparedar, com tijolos e cimento, o acesso à associação.

"A Sita era mesmo assim, não fugia nos momentos difíceis, pelo contrário, onde era difícil, onde era arriscado, lá estava ela", recorda João Semedo.

O médico João Semedo – hoje dirigente do Bloco de Esquerda, depois de 31 anos de militância no PCP – recorda bem esse episódio. Ele era colega da Sita na Faculdade de Medicina e também fazia parte da direção da AE: “Tínhamos convocado uma RGA e a ideia era deitar abaixo o muro que a polícia levantara. A Sita andava a ser seguida pela PIDE mas apesar disso insistiu em participar na RGA. A Sita era mesmo assim, não fugia nos momentos difíceis, pelo contrário, onde era difícil, onde era arriscado, lá estava ela. E assim foi, lembro-me porque nesse dia calhou-me a mim ajudá-la a entrar no hospital sem que a polícia nos barrasse a passagem. Ao lado da Sita, tudo parecia possível e até seguro. E foi mesmo.”

Este episódio – que foi testemunhado também pelo autor desta reportagem, então estudante do secundário – está bem vivo na memória da hoje professora do ensino secundário Eugénia Varela Gomes: “Já não me lembro de onde apareceram as picaretas. Talvez tenham vindo de uma obra ali perto. Aquela parede foi posta abaixo e o que é certo é que a associação ficou aberta. Até o 25 de abril nunca mais voltaram a fechá-la.”

Maria Eugénia, na época dirigente da UEC, responsável pelo trabalho político no ensino secundário, e hoje ainda militante do PCP, ressalva a pouca importância que Sita Valles dava aos cuidados conspiratórios, algo que “certamente lhe fez falta, depois, em Angola”. “Ela, mais que audaciosa, era temerária”, diz Maria Eugénia, “não ligava para esses pormenores”. Eugénia recorda uma ocasião em que Sita, João Franklin e ela própria fizeram uma intervenção na faculdade de medicina que funcionava no Instituto de Medicina Tropical. “Fomos lá, falámos aos estudantes e saímos no carro da Sita, a única de nós que tinha um”. Mas a Polícia fora chamada e esperava-os. Obrigou os três jovens a irem para a esquadra de Alcântara, “com o pretexto de que quem ia a conduzir não era a dona do carro, que ia ao lado; o João Franklin, que ia ao volante, tinha carta de condução mas não dispunha de um documento assinado pela dona a autorizá-lo a conduzir!” Ao chegarem, a primeira coisa que a PSP fez foi revistar o veículo. “E o porta-bagagens estava carregado de livros do Congresso da Oposição Democrática. Ficámos logo ali.”

Capa da lista onde concorria Sita Valles à direção da Associação de Estudantes de Medicina, ano 72/73

Algo muito parecido já acontecera antes: o carro do namorado de Sita estava repleto de Avantes sem que a cunhada, Ana Simões, que lhe pedira o carro emprestado, soubesse. Mas quando foi devolver o carro, Sita dirigiu-se ao porta-bagagens, para tirar o material e foi nesse momento que um pide que a seguia interveio. Ainda conseguiu escapulir-se, mas a Ana Simões, que estava dentro do carro, não foi a tempo. Foi presa.

Primeira revolução

Há coincidências difíceis de acreditar. Onde estava Sita Valles no 25 de Abril? Em Moscovo. Tinha sido enviada por Zita Seabra, que, segundo a biógrafa de Sita, Leonor Figueiredo, raciocinou desta forma: “Era de longe o melhor quadro e merecia ir” representar a UEC ao congresso das juventudes comunistas, o Komsomol. Por outro lado, Zita sabia que a viagem a “queimava” diante da Pide. Mas “queimada” já ela estava. Queimada por queimada, dava-lhe essa alegria. A contrapartida, porém, seria a despromoção por razões de segurança: deixaria de “controlar” a Cidade Universitária.

Mas com o 25 de Abril, não só não houve despromoção, como o comprometimento de Sita aumentou: passou a dedicar-se à atividade partidária a tempo inteiro, tornando-se funcionária do partido. A temeridade de estar sempre a testar os limites da segurança ficara para trás. A Pide estava desmantelada, as Forças Armadas em polvorosa e o secretário-geral do PCP era ministro sem pasta do governo provisório. A luta agora era outra.

Maria da Graça Marques Pinto, a Magaça, saiu nessa altura da clandestinidade, para onde tinha se recolhido em fevereiro de 1973. Presa em 71 num grupo de sete onde estava também o escritor Mário de Carvalho, foi acusada de ser da organização estudantil do PCP. Libertada no final do ano, ainda chegou a frequentar a faculdade de Direito, mas foi forçada a esconder-se. “Por isso, só conheci a Sita quando saí do aparelho clandestino.” As duas faziam parte da executiva da UEC, e nessa altura Sita Valles já era responsável por todo o trabalho político no Ensino Superior.

“A Sita era muito apaixonada pelo que fazia, determinada, voluntariosa. Mas muito obediente, passe a expressão, às orientações partidárias. Tinha uma grande empatia com as pessoas com quem lidava”, assevera Maria da Graça, hoje professora em Viseu e militante do Bloco de Esquerda.

“Era muito humana, de um dinamismo fantástico, era difícil recusar qualquer atividade que ela nos propusesse."

Testemunha dessa empatia dá-nos Fernanda Marques Pinto, irmã de Magaça, na altura militante de base da UEC e da célula dos estudantes do Serviço Cívico. “A Sita era a nossa controleira, com quem estávamos duas ou três vezes por semana.” Passados mais de 40 anos, ainda se nota o tom entusiasmado quando a hoje professora reformada e ativista ambiental no Alentejo fala de Sita Valles. “Era muito humana, de um dinamismo fantástico, era difícil recusar qualquer atividade que ela nos propusesse. De facto, ela tinha uma proximidade connosco que não encontrei em mais ninguém da UEC com quem tivesse trabalhado na altura.” O grupo dos “cívicos” ficou muito unido e os seus integrantes andavam sempre juntos e sempre prontos para qualquer atividade do partido. “De tal forma que uma vez a Zita Seabra nos criticou – e à Sita – por formarmos um grupo à parte nas atividades gerais.”

Para Fernanda Marques Pinto, a Sita era uma congregadora de esforços: “conseguia que abraçássemos as causas e estivéssemos sempre prontos para fazer tudo. Quando reunia connosco e explicava o sentido que o PCP dava à revolução, nós entendíamos, porque utilizava uma linguagem muito fácil e respondia às questões que a gente punha, ao contrário de muitos controleiros que fui apanhando, que, de facto, recusavam o diálogo.”

À procura da segunda revolução

Cartaz do PCP em apoio ao MPLA

 

Um dia, porém, com a mesma teimosia com que abraçara a causa do PCP em Portugal, Sita Valles decidiu regressar a Angola. Estranha opção: ainda se vivia a revolução portuguesa em pleno, o “Verão Quente” estava a começar... sair de Portugal porquê?

“Ela estava muito preocupada com os ecos de corrupção que chegavam de lá”, arrisca Maria da Graça Marques Pinto. “Eu julgo que o motivo seria esse”.

“Estas circunstâncias são indecifráveis a não ser para o portador do dilema: ‘para que lado bate o meu coração’? E entre a Luanda, onde nascera e vivera durante 20 anos, e Lisboa, ela escolheu Angola”, opina Domingos Lopes.

Para o irmão, Edgar Valles, porém, a decisão teve um fundamento mais pragmático: “Quando ocorreram as eleições [do 25 de Abril de 1975] para a Assembleia Constituinte, o PCP tinha a ideia de que iria ter uma grande votação. E o resultado foi uma enorme desilusão”, recorda. O PCP ficou em terceiro lugar, com 13% dos votos. “A Sita convenceu-se de que em Portugal não havia nada a fazer. Que a revolução estava comprometida. E deixou-se iludir por Angola”.

Eugénia Varela Gomes dá mais pistas:

“A decisão de ir para Angola em pleno PREC não foi tomada só pela Sita, quase todos os estudantes angolanos e moçambicanos decidiram fazer o mesmo. Em Medicina havia muitos, a Sita, a Joana Campina, o João Franklin… em Direito o Sérgio Costa”. O próprio Edgar Valles também voltaria mais tarde, acompanhado da mulher.

A decisão não foi saudada pela direção partidária. Zita Seabra fez todos os esforços para fazê-la mudar de ideias. Pediu a Carlos Brito para lhe falar. Como última cartada, promoveu uma reunião com o secretário-geral. Álvaro Cunhal desaconselhou igualmente a viagem. E esclareceu que, se fosse, tinha de sair do PCP.

Mas onde fica o internacionalismo? Não seria normal uma militante internacionalista usar os seus esforços e a sua experiência para contribuir com a luta do MPLA, um partido irmão? Ainda para mais, sendo ela própria angolana?

“Era garantido: se ia para Angola, saía do partido. Porque ia para outro país, e Angola estava também num processo conturbado.

Não era, porém, esse o raciocínio que os dois partidos faziam. “Era garantido: se ia para Angola, saía do partido. Porque ia para outro país, e Angola, como tu sabes, estava também num processo conturbado. Penso que as relações do PCP com o MPLA nunca foram muito próximas, muito boas, e por isso para o partido era mesmo uma questão de separar águas, não haver confusões”, esclarece Eugénia Varela Gomes.

Mas, neste caso, não seria uma forma encoberta de o PCP influir no MPLA? Não, garante Domingos Lopes. “Se o Álvaro Cunhal pensava que era um partido irmão, não fazia sentido mandar alguém para construir um partido, ou infiltrar-se no partido irmão. O Álvaro Cunhal tinha muita estima pelo Agostinho Neto. Havia setores do MPLA que podiam desconfiar. Mas não estou a ver o Álvaro Cunhal a querer infiltrar-se no MPLA”, conclui.

João Semedo recorda com melancolia a partida da camarada. “No meio da agitação em que todos vivíamos, na intensidade dos dias do PREC, a notícia que a Sita ia regressar a Angola foi circulando, foi-se espalhando, deixando um rasto de tristeza e frustração entre nós, embora todos soubéssemos que a Sita não era pessoa para resistir ao apelo revolucionário que vinha de Angola. Para ela, esse apelo era mais forte do que tudo, a sua partida era a mais natural das suas escolhas.”

Sita Valles chegou a Luanda em julho de 1975, quando estava ao rubro a batalha de Luanda, que terminaria com a vitória do MPLA e a expulsão de UNITA e FNLA da capital angolana. A decisão de procurar a segunda revolução ser-lhe-ia fatal. Mas isso ela não sabia. Pelo contrário, podemos imaginar a esperança, o entusiasmo (e a ilusão) que levava consigo ao desembarcar no país que era o seu.

A grande ilusão

“Olhando para trás, ela não devia ter ido para lá”, opina o irmão. Mas não era o apelo da sua terra que falava mais alto? Ela não se sentia angolana? “Nós naquela altura tínhamos o sentimento do internacionalismo proletário”, atalha Edgar Valles. “Hoje, olhando para trás, vemos que, quer se queira quer não, os africanos encaram os não africanos de outra forma. Encaram-nos quase como, no tempo dos Filipes, os portugueses encaravam os espanhóis. Acho que aquilo tudo foi uma grande ilusão”, lamenta.

Mas Sita e Edgar, apesar de não parecerem, eram africanos. Tinham nascido em Cabinda e Cuíto, Angola. Porém, não eram negros. Eram, por isso, vistos como portugueses? Pelo menos é isso que se retira de um episódio que ocorreria mais à frente. Mas não nos antecipemos.

Sita Valles desembarca em Luanda e em breve faz valer a sua experiência de organizadora, adquirida no PCP. É desafiada por Nito Alves que, por essa altura, era uma estrela em ascensão no MPLA, para dinamizar o Comité de Ação dos Intelectuais Revolucionários, que organizava os professores e intelectuais, os alunos do secundário e das universidades. O Comité, por seu lado, fazia parte do Departamento de Organização de Massas (DOM).

“Quando chega o 25 de Abril”, recorda Edgar Valles, “o MPLA estava de rastos, do ponto de vista militar, diferente do PAIGC e da FRELIMO. Mas entre os jovens estudantes e trabalhadores de Luanda, fica com uma pujança enorme.” Organizativamente, porém, tinham muitas debilidades. “De maneira que a Sita, nesse aspecto, ajudou muito, porque vinha também com a experiência de Portugal.”

Nito Alves, o homem que viria a ser acusado de “fraccionismo” ao serviço dos inimigos de Angola, era naquela altura um dos mais dinâmicos dirigentes recém-eleitos para o Comité Central do MPLA. Agostinho Neto promovera-o depois do papel importante que desempenhara no Primeiro Congresso do MPLA, realizado em Lusaka em agosto de 1974, um congresso que não chegou a terminar. A facção de Agostinho Neto simplesmente abandonara-o, por não ter maioria. A Revolta Ativa fora a segunda corrente a ir-se embora, deixando apenas os militantes ligados a Chipenda. Este ainda tinha ensaiado proclamar-se presidente do MPLA, mas acabara por desistir, por falta de apoios internacionais, e entrara na FNLA. Desta forma, quase quatro meses depois do 25 de Abril, num momento em que o MPLA vivia o seu melhor momento em termos de adesão de base, a sua estrutura de quadros encontrava-se totalmente dividida. Milhares de simpatizantes do MPLA organizavam comités de ação em Luanda e outras cidades, mas a direção no exterior engalfinhava-se em duros confrontos.

Num momento em que o MPLA vivia o seu melhor momento em termos de adesão de base, a sua estrutura de quadros encontrava-se totalmente dividida.

Nito Alves aparecera de surpresa no congresso, representando a Primeira Região Militar, a que ficava perto de Luanda e se mantivera anos isolada do resto da estrutura do MPLA; mas mesmo em circunstâncias precárias, nunca deixara de combater e de resistir às tropas coloniais. Ao discursar no Congresso, o guerrilheiro chegado da mata surpreendeu pela acutilância da oratória e pela violência com que atacou Revolta do Leste e Revolta Ativa, colocando-se ao lado de Agostinho Neto.

Resoluções da Conferência Inter-regional do MPLA, que foi o verdadeiro Congresso

Neto em troca promovera-o para o Comité Central (CC) na Conferência Inter-Regional, organizada no mês seguinte e a primeira em território de Angola, em Lindoje, distrito de Moxico. Apesar do nome, esse seria o verdadeiro congresso do MPLA. Para o novo CC entrara também outro militante, José Van Dunem, o mais jovem daquele organismo. Se Nito vinha da mata, Van Dunem vinha da prisão, onde fora confinado em 1971 até o 25 de Abril por, tendo feito o serviço militar nas tropas coloniais portuguesas, passar informações ao MPLA.

Angola independente

Na declaração da Independência, em 11 de novembro de 1975, Sita Valles já compareceu ao lado de José Van Dunem, com quem se casaria e teria o único filho, João Ernesto, o Che.

Sita com o filho João Ernesto, o "Che".

No primeiro governo da República Popular de Angola, Nito Alves foi nomeado ministro da Administração Interna (cujas competências eram os assuntos de administração do território, não tendo a supervisão das polícias e da segurança, como acontece em Portugal). A sua prioridade passou a ser a organização do poder popular que se disseminara através da auto-organização de estudantes e trabalhadores por todo o país, mas principalmente em Luanda.

José Van Dunem foi nomeado Comissário Político das Forças Armadas Populares de Angola (Fapla).

Nito Alves estava como peixe na água entre o povo. Era um orador eloquente, capaz de comunicar e empolgar. O contraste com Agostinho Neto era chocante.

“A imagem que as pessoas têm do Agostinho Neto é a de um homem muito passivo. Quando começava a falar, parecia que já tinha morrido. Cansado” opina Edgar Valles. Em contrapartida, “o Nito era uma bomba. Arrebatava.”

Nito tinha de instrução apenas a quarta classe, mas era um autodidata. Mesmo ministro, matriculara-se na Faculdade de Economia e ia às aulas, estudava. Durante os tempos na mata, conhecera o marxismo pela única fonte de que dispunha, “Os Fundamentos do marxismo-leninismo” de F. V. Konstantinov. Isto é, aprendera os rudimentos do marxismo por uma vulgata com mais semelhança a um catecismo do que aos escritos de Karl Marx e de Lenine. E gostava muito de fazer citações a torto e a direito. Mas queria aprender e, agora saído da mata, tinha ânsia de leitura.

Sita Valles estava no 5º ano de medicina e militava no grupo de ação, uma espécie de célula do MPLA. Foi lá que encontrou José Reis, hoje bancário reformado em Lisboa, então estudante também de medicina, do 2º ano. Os dois tinham-se conhecido ainda em Lisboa, onde José Reis fora, aproveitando uma licença graciosa da mãe – todos os funcionários públicos portugueses em Angola tinham direito a essa licença de quatro em quatro anos. Depois reviram-se muitas vezes em Angola. “A Sita Valles foi indigitada pelo Nito Alves para organizar o setor da educação e intelectuais. O trabalho que ela fez foi à luz dos estatutos do MPLA, com autorização, não foi um trabalho à parte, ‘fraccionista’. Criava os grupos de ação, a estrutura-base do movimento MPLA, mas uma estrutura já com feições partidárias”, recorda José Reis, que foi preso logo a seguir ao 27 de maio, escapando por um triz à morte e sendo libertado ao fim de quase três anos de prisão e trabalhos forçados.

É nessa época que Nito Alves discursa contra os “esquerdistas”, chamando à sua delação. Os “esquerdistas” eram os militantes e ativistas dos Comités Amílcar Cabral, os Cac’s, com muita influência na base estudantil e trabalhadora, que viriam a formar a OCA, Organização Comunista de Angola, de tendência maoista. Tanto os ativistas da Revolta Ativa que voltavam a Angola quanto os militantes da OCA começaram a ser presos.

Na opinião de Jorge Fernandes, hoje engenheiro civil em Oeiras, Nito Alves foi duas vezes usado por Agostinho Neto: “a primeira foi no Congresso de Lusaka, para combater a Revolta Ativa e a fração Chipenda; a segunda foi já pós-independência, sendo o ‘miúdo’ do Neto”. Sempre que queria desmantelar as outras organizações ou comités, utilizava o Nito Alves para transmitir à população as suas decisões, garante. “Nunca era o Agostinho Neto a transmitir as grandes decisões de combater a oposição ao MPLA. Era o Nito Alves que o fazia, embora ele, nos discursos, sempre dissesse que estava a transmitir as diretrizes do Bureau Político. E a seguir chamava a combater os ‘intelectuais burgueses’ da Revolta Ativa, ou os maoistas, a OCA, etc. E às vezes excedia-se e apelava até à delação”, reconhece Jorge Fernandes, igualmente um sobrevivente do 27 de maio, tendo ficado dois anos e meio na prisão e num campo de trabalhos forçados. “Essa parte suja era o Nito que fazia, o Neto aproveitava o ‘miúdo’ para isso. E, claro, depois vinha a polícia, do Ministério da Segurança, e prendia-os.”

No final de fevereiro de 1976, realizou-se em Moscovo o XXV Congresso do Partido Comunista da União Soviética, e o MPLA enviou uma delegação composta por Nito Alves e José Van Dunem. Nito voltou impressionado com o que vira, falando sobre “o milagre da URSS”.

A luta contra o “fraccionismo”

Quando é que Agostinho Neto começou a pensar que a “bola da vez” seria o próprio Nito Alves? Quando começou o presidente de Angola a preparar-se para acusar Nito e os seus companheiros de “fraccionismo”?

Um documento dos arquivos de Cuba recentemente tornado público mostra-nos que apenas sete meses depois da independência, em julho de 1976, Neto já dizia que Nito tendia a “criar uma fração dentro do MPLA”, afirmava não saber se “Nito é uma pessoa recuperável”, e acusava-o de se ter rodeado de “pessoas que se dizem membros do Partido Comunista de Portugal, mas que na verdade são pessoas que nunca fizeram nada pela revolução no seu país.” A referência a Sita Valles parece mais que evidente.

Na mesma conversa, Agostinho Neto afirma ter posto Nito sob vigilância. (Veja, neste dossier, o artigo “Neto mandou vigiar Nito 10 meses antes do 27 de Maio”). Mas as medidas contra a corrente que seguia Nito já haviam começado antes, em março de 1976.

A primeira fora despromover José Van Dunem, que deixou de ser o Comissário Político nacional das FAPLA para ocupar o posto de Comissário Político da Frente Leste, longe de Luanda.

A segunda medida atingira diretamente Sita Valles. É José Reis que relata o episódio: “A Sita tinha de pagar as favas, portanto foi expulsa, primeiro, por ser portuguesa. Mas enganaram-se, porque ela não era portuguesa, nasceu em Cabinda, portanto o pretexto não serviu. Então deram a volta e resolveram expulsar todos os militantes do MPLA que tinham militado noutros partidos.” Edgar Valles enfatiza: “Nem era uma questão de estarem a militar noutras organizações, no presente; era que já tivessem militado. E só aplicaram isso à Sita. Também não se referiam a outras organizações que fossem hostis ao MPLA. Não podia ter militado em qualquer organização.” E acusa: “havia aqui pessoas que tinham militado no MRPP e que continuaram no MPLA. Foi uma atitude completamente orientada à Sita”.

No Huambo

Foi por essa altura que Sita Valles foi enviada para o Huambo, num grupo de estudantes de medicina quase finalistas que foram dar apoio à primeira equipa de médicos cubanos chegada a Angola. José Reis participou nessa missão, apesar de ser do 2º ano de medicina, com funções políticas e por ser natural do Huambo, conhecendo assim a região muito bem.

“Ficámos lá um mês, depois fui para o Bié. Nesse mês tive oportunidade de viver perto da Sita. Vivemos na mesma casa, tomávamos o pequeno-almoço juntos, almoçávamos juntos, e isso foi muito agradável, porque conheci-lhe a outra face. A Sita generosa.” E dá um exemplo: “enquanto trabalhadores da medicina, tínhamos como missão pôr o hospital a funcionar independentemente dos doentes que lá estavam terem sido da Unita, ou do quer que fosse. Eram seres humanos que precisavam ser cuidados. Foi a primeira vez que eu vi a Sita atuar.” Ambos fizeram uma revista às enfermarias para retirar, a todos os doentes acamados, tudo o que pudesse identificá-los como militares: “um cinturão, umas botas, uma camisa militar escondida debaixo da cama. Por quê? Porque quando a DISA (polícia política) passasse, essa gente ia dali para o cemitério. Se isto é um gesto patriótico, não sei, mas é um gesto humano.”

No contacto do dia a dia, José Reis pôde perceber que “aquela agressividade, aquela pujança que ela tinha na luta política, depois no recato mudava para uma meiguice, uma doçura incrível.” José Reis recorda ter conhecido José Van Dunem nessa altura: “quando ele foi nomeado para o Leste passou lá por casa. Acho que o vi mais uma ou duas vezes na vida.”

José Reis recorda ainda outro episódio que evoca a tal temeridade de Sita Valles nos tempos da ditadura: “Na casa onde vivíamos no Huambo éramos quatro, e íamos comer a um hotel na baixa. Uma noite, chegamos a casa e sentimos que havia gente dentro. A casa estava a ser assaltada – por militares das Fapla, claro, já não havia Unita ali. Era extremamente perigoso, porque nós os quatro éramos brancos e eles estavam armados. E a Sita correu com eles quase a pontapé. Arrancou por ali fora, nós a dizer aos berros ‘sai daí, está quieta!’, mas ela foi fazer comício para o quintal. Chamou-os, deu-lhes um raspanete enorme, disse que aquilo não era maneira de se portarem como militares das Fapla. E os tipos meteram o rabo entre as pernas e foram-se embora em vez de lhe dar dois tiros, como podia ter acontecido.”

Um terceiro episódio recordado por José Reis teve a ver com descoberta dos cadáveres de um membro do Comité Central do MPLA e de outros militantes, um dos quais fora colega de escola de Reis, Fadário Faustino Muteca, todos mortos pela Unita. “Houve um funeral nacional, e de Luanda vieram o Lara, o Nito, o Ndunduma [Costa Andrade, diretor do Jornal de Angola]. Nós fizemos a nossa campanha no hospital: pintámos cartazes e faixas, convocámos os trabalhadores para estarem presentes no minuto de silêncio que se fez. Eu e a Sita hasteámos a bandeira da República Popular de Angola pela primeira vez no hospital, com os cubanos a protestarem porque não sabíamos como se tratava uma bandeira. Eu deixei-a cair no chão para atar uma das pontas, e os cubanos em pânico, que a bandeira nunca podia tocar o chão. Há uma fotografia, mas não se reconhecem as pessoas. Ela está de bata, eu estou com a minha velha t-shirt, os dois a içar a bandeira. É claro que toda essa documentação que afixávamos nos corredores, quando virávamos as costas, desaparecia. Porque os funcionários todos do hospital eram da Unita. Mas a Sita não se importava: punha outros cartazes outra vez.”

As “lagartixas fraccionistas”

A guerra aberta de Agostinho Neto contra Nito e Van Dunem foi despoletada na 3ª Reunião Plenária do Comité Central do MPLA, nos dias 23 a 29 de outubro de 1976. Ambos são acusados formalmente de “fraccionismo”. Por proposta de Van Dunem, foi então formada uma comissão de inquérito, sob a presidência de José Eduardo dos Santos, para investigar a existência de fraccionismo no interior do MPLA. Mas as medidas contra os “nitistas” não esperaram pelo inquérito. A mais importante de todas foi a extinção do Ministério da Administração Interna, o que significava afastar Nito Alves do governo e retirar-lhe o poder de que dispunha. Foi decidido igualmente fechar o jornal Diário de Luanda e o programa radiofónico Kudibanguela, que seguiam a orientação “nitista”.

A acusação de “fracionismo” contra os dois dirigentes não foi tornada pública, mas um documento aprovado na reunião, “Resolução sobre a unidade no seio do MPLA”, conclamava os militantes a agirem contra as “correntes desagregadoras”: “Tendo considerado a ação perniciosa de sectores ligados à reação interna e externa, e grupos esquerdistas que tentam, alimentando correntes desagregadoras e utilizando o nome de Dirigentes, provocar a confusão ideológica, perturbar a coesão das estruturas do Movimento e dividir os militantes, decide […] condenar energicamente esses atos; [...] exortar os Militantes do MPLA para que, sob a direção incontestável do camarada Presidente, combatam o divisionismo, o sectarismo e o oportunismo […] sancionar com firmeza todos os membros do MPLA que contribuam para a divulgação de noticias tendenciosas que atentem contra a unidade no seio do MPLA”.

A partir dessa data, o tom da campanha contra os “fraccionistas” não parou de subir.

“Estava convencida de que a coisa lhes ia correr bem”

Cerca de um mês depois, em novembro de 1976, Eugénia Varela Gomes, de visita aos pais, voltou a encontrar Sita Valles em Luanda. “A Sita sabia que eu vinha e passou lá na casa dos meus pais, ficou um bocadinho. Estava com a impetuosidade, o entusiasmo do costume, e estava convencida de que a coisa lhes ia correr bem. Disse até esperar o apoio dos cubanos”, recorda. Mas o que seria exatamente correr bem? “Era afastarem da direção do MPLA aqueles que, na opinião deles, não estavam pela verdadeira revolução e independência. Era muito clara a opinião deles que quem estava na direção do MPLA, a começar pelo Agostinho Neto, não estava interessado em criar o socialismo em Angola”, explica Eugénia, insistindo que a opinião que ouviu em relação ao presidente de Angola não era de grande apreço, tanto da parte da Sita quanto dos pais.

João Varela Gomes fora para Angola com a ideia de poder lutar nas Fapla pela independência. “Mas nunca conseguiu. Nunca. Foi sempre mais ou menos colocado na prateleira. Isso aconteceu com praticamente todos os militares que foram para lá. Houve sempre desconfiança em relação aos portugueses, sempre.” Eugénia lembra-se de ouvir a mãe falar que “a coisa estava muito complicada, que a campanha era muito grande, que a Sita estava em perigo, e que se ela aparecesse lá em casa a pedir ajuda, eles dariam sem hesitar.”

A sorte de João Varela Gomes (ou o instinto dado pela experiência, seria melhor dizer) fez com que se antecipasse e negociasse a ida para Moçambique antes do 27 de maio. “Como o meu pai se sentia inútil em Angola, começou a tratar das coisas para ir para Moçambique, onde estava o Ramiro Correia, que era muito amigo dele e que estava a ser útil. E os de Moçambique vieram buscá-lo. Se não tivessem vindo, se calhar não tinha saído.” O casal Varela Gomes ainda estava em Angola quando ocorreu o 27 de Maio, mas os moçambicanos vieram buscá-lo dias depois.

Mas retomemos o fio à meada dos acontecimentos. Em fevereiro de 1977, Nito Alves começou a distribuir as suas “13 Teses em Minha Defesa”, argumentando que o tempo para que a comissão de inquérito sobre o fraccionismo no MPLA chegasse a alguma conclusão estava a chegar ao fim sem que ele próprio tivesse sido ouvido, e por isso, ele próprio assumia a sua defesa. As 13 teses são esse documento de defesa – e também de contra-ataque. O autor anuncia que o seu objetivo é denunciar, desmascarar e combater energicamente a natureza reacionária da aliança de direita e dos maoístas no seio do MPLA, aliança que, segundo ele, representaria uma séria e verdadeira ameaça ao desenvolvimento do nosso processo revolucionário e um ótimo serviço às forças do imperialismo mundial. E passa ao contra-ataque: acusa alguns dos mais destacados dirigentes do MPLA de serem os verdadeiros fraccionistas, de serem elitistas, paternalistas e dirigistas, de sanearem sistematicamente militantes de esquerda, de truncarem e substituírem deliberações tomadas. E a acusação mais grave: afirma que o Bureau Político estava infiltrado pela CIA, na pessoa de um militar e que o Ministério da Defesa era uma central do tráfico de diamantes.

Em 20 e 21 de maio, o Comité Central expulsa do organismo Nito Alves e José Van Dunem. No próprio dia 21, Agostinho Neto preside uma assembleia de militantes na Cidadela Desportiva, em Luanda, onde anuncia a decisão do Comité Central, defende os dirigentes atacados por Nito Alves, particularmente Lúcio Lara, e conclama a uma verdadeira “caçada” aos nitistas.

No dia seguinte, o Jornal de Angola informa a decisão com uma manchete a toda a largura da primeira página: “Liquidar o fraccionismo!” O editorial dessa edição afirmava: “Saberemos dizer e demonstrar que o fraccionismo não passará, vindo que seja de qualquer horizonte.”

Mas será que nem nessa altura Sita Valles se deu conta do perigo que corria? Diz Edgar Valles: “Disseram-me que o Nito e o Zé foram avisados por alguém da DISA que havia um plano para os assassinar na rua. O aviso foi uns dias antes do 27 de maio. A interpretação que eu faço, pondo as pedras no puzzle, é que eles concluíram uns dias antes que de facto iam ser eliminados fisicamente. E acharam que deviam pôr a população na rua.”

Onde estava Sita no 27 de Maio?

Onde estaria Sita Valles na madrugada do 27 de Maio? Em casa, alheia aos acontecimentos? Por tudo o que dissemos antes, essa parece uma impossibilidade. Num posto de comando do “golpe”? No bairro de Sambizanga, ao lado do companheiro, a mobilizar o povo para se manifestar contra a corrupção no governo e a favor de Nito e Van Dunem? Noutro lado?

Provavelmente, nunca saberemos. Aliás, o que aconteceu no 27 de Maio? Um golpe de Estado fracassado, como afirmou posteriormente o governo e a DISA? Uma sublevação desarmada que teria obtido os resultados esperados pelos seus promotores se não tivesse ocorrido a intervenção dos cubanos?

A discussão existe há 40 anos, e as respostas estão em pelo menos dois documentos fechados no Arquivo de Cuba. Trata-se de ‘‘Síntesis sobre nuestra participación en los sucesos del 27.5.77 en la República Popular de Angola”, do coronel Jesús Bermúdez Cutiño, de 31 de maio, e um memorando de Jorge Risquet (o chefe da missão civil cubana em Angola) a Fidel Castro datado do próprio dia 27 de maio. Ambos são mencionados pelo professor de Relações Internacionais Piero Gleijeses, do Paul H. Nitze School of Advanced International Studies dos Estados Unidos, mas não foram até hoje tornados públicos.

O que houve, objetivamente foram algumas, poucas, ações militares e uma manifestação popular desarmada. Durante a madrugada houve ações de pequenos grupos armados de “nitistas” para prender membros do governo ou chefes da DISA. Há pelo menos um testemunho do ataque ao apartamento de um membro da DISA particularmente odiado, Carlos Jorge, que aliás falhou porque ele não dormira em casa, e a mulher, militar das Fapla, respondeu a tiro. É verosímil que tenham ocorrido mais operações como esta. Ainda de madrugada, o destacamento feminino da 9ª Brigada, liderado pela Comandante Elvira da Conceição (Virinha) e pela Comissária política Fernanda Delfino (Nandy), que estava grávida, atacou a cadeia de São Paulo usando um blindado soviético BRDM2. Depois de um duro combate que se prolongou por horas com baixas dos dois lados, as tropas atacantes saíram vitoriosas. Como consequência do assalto, foram libertados os presos “nitistas”, entre eles Pedro Santos, do Conselho da Revolução e Comissário Político, e Galiano da Silva, do Comissariado Político das FAPLA. Porém, houve presos ligados à Organização Comunista de Angola (OCA) que, desconfiados, recusaram-se a sair.

A Rádio Nacional foi tomada, com o apoio de militares da 9ª brigada, e voltou a transmitir o programa radiofónico Kudibanguela, alternando músicas com pronunciamentos. O locutor informou a mudança na rádio, e anunciou que os “camaradas revolucionários, injustamente acusados de traição e de fraccionismo, foram libertados por faplas e pelo povo”. Também disse que “um novo processo revolucionário marxista-leninista se iniciou, que ministros corruptos foram presos, e que o conluio dos sociais-democratas e maoistas chegou ao fim”. Ao mesmo tempo, convocou uma manifestação para a frente do Palácio presidencial de Angola, apelo que, diante da ameaça de tanques cubanos que barravam o acesso ao palácio, foi mudado para a frente da Rádio Nacional.

“Se não foi golpe, devia ter sido”

“A interpretação que eu faço, pondo as pedras no puzzle, é que eles acharam que deviam pôr a população na rua. Fizeram uma grande manifestação”, opina Edgar Valles.

Edgar Valles: "Se não foi golpe, devia ter sido"

Mas terá havido mesmo um planeamento para uma tentativa de golpe de Estado? “Essa é a grande dúvida”, considera Edgar Valles. “Eu hoje concluo que se não houve foi uma pena. Porque pôr as pessoas na rua, sujeitá-las a uma chacina – porque os cubanos foram impiedosos – sem ter um plano, foi um enorme erro.”

Edgar Valles está convencido de que os soviéticos terão garantido a Nito que os cubanos se manteriam neutros. “Havia contactos com a embaixada da União Soviética e os soviéticos passaram a mensagem de que se as pessoas fossem para a rua, numa grande manifestação, os cubanos não iriam intervir. E as pessoas vão para a rua numa grande manifestação, mas o Neto telefona ao Fidel a pedir ajuda, o Fidel diz que sim, e os cubanos vêm e matam as pessoas na rua. Metralharam mesmo. Depois foram ao Sambizanga. Havia também angolanos, mas a base das tropas foram os cubanos.”

Símbolo da importância decisiva da intervenção cubana é a retomada pelas forças fiéis ao presidente da Rádio Nacional, transmitida em direto pela antena. E a voz que se houve, em castelhano, a invadir os estúdios e tomar conta da rádio, expulsando o locutor, é a do coronel cubano Rafael Moracén Limonta a anunciar que “la emisora va a ser puesta en manos de los revolucionarios, con Agostinho Neto.”Assim, em castelhano.

Para Edgar Valles, os cubanos não estavam em sintonia com os soviéticos. “E o Fidel considerava Neto um grande aliado. Havia entre os cubanos pessoas que estavam ligadas ao nosso grupo, mas a maioria deve ter começado a pensar que o grupo era esquerdista, era a extrema-esquerda e queriam derrubar o Neto. Suponho que foi isso”, diz o irmão de Sita, que conclui: “A intenção não era derrubar o Neto, era criar uma nova relação de forças, eu estou convencido disso. Um plano de golpe de Estado não é uma manifestação de rua.”

Edgar Valles escapou à morte certa porque regressou a Lisboa em dezembro de 1976. “Eu vim porque se não matavam-me. Tinha a noção disso. Eu escrevia na Seara Nova, lá colaborava com o Diário de Luanda e dava aulas na Faculdade de Direito; e então, achavam que eu era um dos teóricos do ‘nitismo’. E que fazia os discursos do Nito Alves, o que é mentira, eu não tinha influência nenhuma, porque eu nem sequer estava no MPLA. Fui de Portugal para lá em fevereiro de 1976. Pedi para entrar no MPLA, mas nunca deram seguimento ao meu pedido. Por causa do nome, acharam que eu tinha uma grande influência. E quando veio o 27 de Maio e andaram a prender pessoas houve quem perguntasse onde é que eu estava.”

O fim e a caça às bruxas

Apelos ao ódio no "Jornal de Angola"

Quando a 9ª Brigada, a principal unidade militar de Luanda, simpática a Nito, se rendeu, por não ter capacidade para enfrentar os tanques e blindados cubanos, o destino de Sita Valles estava traçado. Mas sabemos muito pouco sobre o que lhe aconteceu. Sabemos que fugiu com o companheiro e que ambos foram capturados três semanas depois na aldeia de Kaleba, porque uma mensagem enviada por eles terá sido interceptada. Mas há muita controvérsia sobre os destinatários e o conteúdo da mensagem. O que é certo é que o Jornal de Angola de 19 de junho anunciava a prisão de ambos. E uma mensagem da embaixada de Portugal para Lisboa datada de 8 de julho anunciava que ambos tinham sido fuzilados naquela data. A biógrafa, Leonor Figueiredo, situa o fuzilamento mais tarde: no dia 1 de agosto. A essa altura já tinham ocorrido centenas de fuzilamentos e milhares de prisões. Um discurso de Agostinho Neto no dia 28 de maio, quando foi encontrada uma ambulância incendiada que tinha dentro sete corpos de ministros, militares e pessoas ligadas ao governo, foi à televisão anunciar que “certamente, não vamos perder muito tempo com julgamentos. Nós vamos ditar uma sentença.” Com isso, deu rédea solta ao processo de caça às bruxas. As rádios emitiam spots conclamando a população a denunciar os “fraccionistas” fugidos, o Jornal de Angola publicava manchetes como “Amarrem-nos aonde forem encontrados”, ou “Todos os fraccionistas pagarão pelos seus crimes”. A orgia de sangue durou talvez dois anos e provocou a morte, segundo cálculos da Amnistia Internacional, de 30 mil pessoas, que tecnicamente se encontram desaparecidas, porque o Estado angolano não admitiu essas mortes nem forneceu certidões de óbito e não se sabem onde estão os seus restos mortais.

O silêncio do PCP

Quando começaram a circular os rumores de que Sita Valles tinha sido fuzilada, houve entre os militantes do PCP uma enorme consternação e uma incompreensão pelo silêncio do partido diante do sucedido. “Houve até um plenário da UEC no edifício que hoje é o museu do Fado, onde funcionava o centro de trabalho de Alfama do partido e tinha o maior auditório. Aí foi possível falar abertamente, e foi dito com toda a clareza que independentemente do que se sentisse ou não se sentisse pela Sita Valles e o que ela representava, o objetivo do partido era preservar as relações com o MPLA. E portanto publicamente não iria tomar posição nenhuma”, recorda Eugénia Varela Gomes.

“Depois da morte dela o silêncio imposto foi brutal. Não se podia sequer mencionar o nome!” afirma Maria da Graça Marques Pinto. “Todos nós procurávamos saber: o que é que aconteceu à Sita? E a resposta era que o assunto era tabu. A Zita Seabra, que mais tarde veio a terreiro falar da Sita, naquela altura não permitia sequer que se falasse – se alguém mencionasse o tema ela acabava a conversa, dizia que aquilo não interessava nada. Muita gente nessa altura saiu, bateu as portas da UEC por causa disso.”

Foi o caso da irmã Fernanda. “Quando o partido publicou a declaração do Bureau Político do MPLA sobre o 27 de Maio, responsabilizando a Sita por muito do que tinha acontecido, decidi abandonar o PCP”, recorda. “Era impressionante como é que uma militante cinco estrelas como ela, a seguir era uma traidora. Sem nenhuma explicação. Os controleiros só diziam que era um assunto para não ser falado. Pedia-se que os militantes fossem autómatos, fizessem o que lhes era pedido, sem questionar. Esse tipo de respostas para mim não servia, e abandonei a militância no PCP”, explica Fernanda Marques Pinto.

A ruptura de Edgar Valles foi um episódio à parte. “Eu pertencia à célula de jornalistas, e o controleiro era um funcionário chamado Pedro Serra. Chamou-me ao hotel Vitória no Verão de 77 e disse-me que os esquerdistas, nomeadamente o PRP-BR, que tinham um jornal, o Página 1, estavam a atacar muito o PC dizendo que havia ligação entre o PC e os acontecimentos do 27 de maio, e que o partido achava que eu não devia aparecer nas sedes para evitar esses ataques. Pediram-me para ficar durante uns meses afastado e que depois voltariam a contactar. Eu perguntei se havia alguma falta de confiança em mim e ele disse que não, que tinham toda a confiança em mim, que era apenas uma precaução. Nunca mais voltaram a contactar-me, nem eu a eles. Fiz o corte.” Entretanto, um livro sobre o apartheid da autoria de Edgar Valles e que fora editado pela Seara Nova e estava impresso e pronto para a distribuição, foi mandado destruir pelos próprios editores.

Na época, Edgar Valles trabalhava no semanário Extra, onde era colega de Francisco Vale, atual dono da editora Relógio D’Água. “Ele, que é trotskista e tem uma formação muito vasta, demonstrou-me que isto no fundo era uma prática estalinista. Ajudou-me a desmontar a questão em termos ideológicos. Porque eu não estava a perceber a reação do PCP. E ele falou comigo, pacientemente, sobre o que é que tinha acontecido na Revolução Russa e disse-me que aquilo não era novo. Ele foi muito importante para mim, porque em termos ideológicos ajudou-me a fazer o corte. Porque a pior coisa que há é a pessoa continuar na área do PC e não compreender o que se passou.”

Direito à memória

Eugénia Varela Gomes acha importante que Sita Valles não seja esquecida. “Porque não tenho dúvida nenhuma de que a Sita estava genuinamente convicta de que, na perspetiva dela, como revolucionária que se considerava, era necessário correr com aqueles dirigentes. Até ao fim, ela foi absolutamente convicta do que fez. A Sita nunca foi pessoa para ficar a ver as coisas passarem sem ter um papel ativo. E teve-o, ao mais alto nível.”

Este texto é uma contribuição para que a memória de Sita Valles, fuzilada aos 25 anos, depois de uma vida política intensa em duas revoluções, seja preservada.

Fontes consultadas: 

“Purga em Angola – Nito Alves, Sita Valles, Zé Van Dunem – o 27 de Maio de 1977”, Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus

“Sita Valles, Revolucionária, Comunista até à Morte (1951-1977)”, Leonor Figueiredo

“‘Golpe Nito Alves’ e Outros Momentos da História de Angola Vistos do Kremlin”, José Milhazes

“Angola: A Tentativa de Golpe de Estado de 27 de Maio de 77 – Informação do Bureau Político do MPLA”, edições Avante

“Estamos Juntos” – O MPLA e a Luta Anticolonial (1961-1974). Tese de doutoramento de Marcelo Bittencourt na Universidade Federal Fluminense

Memórias de um golpe: o 27 de maio de 1977 em Angola(link is external)(link is external)”, de Inácio Luiz Guimarães Marques, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal Fluminense, como requisito para obtenção do grau de Mestre.

O 27 de Maio angolano visto de baixo(link is external)(link is external)”, Lara Pawson, Revista do Instituto Português de Relações Internacionais, junho de 2007

Post-Modern Patrimonialism in Africa: the Genesis and Development of the Angolan Political System (1961-1987)(link is external)(link is external)”, Nuno Carlos de Fragoso Vidal, dissertação apresentada à Universidade de Londres para obtenção de grau de doutor, 2002

Ascensão e queda violenta do Nitismo(link is external)(link is external)”, de Pedro Sousa Ferreira, dossier especial Dias da Independência – “Telegramas de Angola: Verdes anos, a guerra civil, a repressão e os milhares de retornados(link is external)(link is external)” da Agência Lusa.

1Paulo de Carvalho, “Evolução e Crescimento do Ensino Superior em Angola”, Universidade Agostinho Neto (Luanda, Angola) e Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do ISCTE-IUL

Dossier: 

Dossier 270: O 27 de Maio de 1977 em Angola