sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

ABRIL da Liberdade e os nossos irmãos da Galiza // versão curta

 

ABRIL da Liberdade e os nossos irmãos da Galiza

Manuel Duran Clemente

(Capitão de Abril)

 

O caminho faz-se caminhando…

Este capitão de Abril é filho de Aldina Duran Clemente, nascida em Moscoso/Redondela (Pontevedra) a 24 de Agosto de 1920, e corre-lhe nas veias o sangue galego. Mas foi na quinta de Santa Rita, em Palença de Cima (Almada) que nasceu, na véspera de S. Pedro de 1942, na casa da tia-avó Maria Dolores Duran (também natural de Moscoso). A minha mãe foi criada por ela desde os dezoito meses, porque Dolores não teve descendentes e podia proporcionar melhor futuro à sobrinha, do que a minha avó Maria, que vivia com muitos filhos e dificuldades na aldeia de Moscoso. Aos 21 anos a minha “nai” casou com um militar garboso, um furriel beirão, natural do Fundão. Quando nasci, o meu pai estava destacado no Faial (Açores), vivíamos o tempo da II Guerra Mundial. Onze anos mais tarde, o futuro capitão de Abril saía ao sábado,,do colégio interno, Instituto dos Pupilos do Exército, em S. Domingos de Benfica, e atravessava o rio Tejo nos cacilheiros rumo a Cacilhas. Ali tomava a camioneta até Palença de Cima e entrava no portão alto de ferro da quinta de Santa Rita, já noite. Então caminhava entre o portão e a casa assobiando arrepiado… e era este assobio que me animava a esperança de bons encontros: “- Querida tia-avó!”… - Chegaste Manolo?”… “- Cheguei, minha querida…!”.

Viver largos tempos na quinta onde nasci, e frequentei até à adolescência, desenvolveu-me o gosto pela terra. E a Natureza foi a minha primeira Universidade.

Na década de 1960 os jovens oficiais das Forças Armadas adquiriram então uma compreensão e uma leitura reflexiva da realidade e do mundo, e quando foram destacados para a Guerra Colonial em 1961. Ocorreu toda uma dialéctica e questionamento do sentido daquela guerra sangrenta e inútil (como todas as guerras), que se prolongou por treze anos, opondo os movimentos de libertação africanos ao domínio colonial português.

As experiências vividas desmentiam a propaganda oficial do regime de Salazar, que foi incapaz de negociar uma solução política condigna para a independência das colónias no contexto do pós II Guerra Mundial. O ditador conseguiu sobreviver à derrota do nazi-fascismo, ancorado num discurso anticomunista que se tornou hegemónico e ocidental. A década de 1960 anunciava rupturas e reclamava a urgência da mudança, com movimentos sociais contra o racismo, pela liberdade, igualdade e direitos humanos. Destes anos prósperos em ideias e sonhos, de lutas políticas e culturais travadas na Europa e no resto do mundo, recordo as frases célebres de Luther King (“I have a dream”, 1963), do Maio de 68 "Seja realista, exija o impossível!”, do movimento Hippie (“peace and love” e “ban the bomb”), como gritos da revolta que inspiraram a minha geração, ampliados nas canções de Bob Marley, Angela Davis, Bob Dylan, Janis Joplin e tantos outros, ou na voz da guitarra de Jimi Hendrix. Neste contexto, os militares do quadro permanente, forjados numa nova cultura militar e na contracultura civil, não podiam ficar indiferentes aos ventos da mudança e, uma minoria esclarecida, conseguiu consciencializar os mais distraídos e cativá-los para a Revolta.

Em 1968 já conspirava com outros capitães na Direcção da Arma de Engenharia/ Fortificações e Obras Militares/DSFOM. E após a minha primeira comissão na colónia de Moçambique (1969-1971) regressei novamente a este serviço,por mais dois anos e meio. A 1 de Abril de 1973 enviei um requerimento ao Ministro do Exército, ao abrigo do Art.º 12º do Estatuto do Oficial do Exército, solicitando a saída do Quadro Permanente (QP), onde ingenuamente denunciava o obscurantismo e a falta de liberdade do regime, através de uma longa reflexão filosófica.

Dissertações apresentadas no III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, anunciavam que seriam as Forças Armadas a terminar com a guerra colonial e a derrubarem o regime. A ideia foi lavrada nas conclusões do congresso e germinou em outras latitudes materializando-se no golpe militar de 25 de Abril de 1974, consagrando-se nos três Ds: “Descolonizar, Democratizar e Desenvolver” do “Programa do MFA”.

Nas Forças Armadas desenvolvia-se um largo movimento de consciência democrática entre os militares, oficiais intermédios do QP/Quadro Permanente, através de encontros e discussões pronunciadoras. Uma dezena de oficiais da Armada, e apenas eu do Exército, estivemos presentes clandestinamente nesse III Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. No meu caso, aproveitei para distribuir o requerimento anteriormente citado, e as hierarquias militares, com receio de criarem uma “vítima” numa época de contestação generalizada, não oficializaram uma punição formal mas apressaram a minha “deportação” (em comissão militar) para a Guiné-Bissau, a 30 de Julho de 1973.

A mobilização popular e a luta pela liberdade, dos antifascistas e anticolonialistas, ajudaram-nos a compreender muitos aspectos programáticos, retomados um ano depois nos textos do MFA e na luta do Portugal de Abril, que não nasceram por geração espontânea ou por uma aceleração artificial da história, mas na continuidade dos processos de luta de diferentes movimentos democráticos da oposição à ditadura.

A capacidade organizativa dos capitães que fizeram a Revolução de Abril resultou da estreita unidade conseguida em torno de um objectivo comum, assente em duas razões primordiais:

1) Acabar com a Guerra Colonial;

2) Libertar o país da Ditadura.

Se uns foram mais incitados pela primeira das razões, outros foram pela segunda, que era fundamental à concretização da primeira. O protesto inicial poderia ter tido essa componente relativamente às três Armas do Exército (Infantaria, Cavalaria e Artilharia), que eram afectadas pelo Decreto-Lei 353/73, mas a tentativa de denegrir-nos cai por terra. As reivindicações e críticas ao Poder Fascista foram assinadas por oficiais (capitães e subalternos) de todas as Armas e Serviços. Para além dos que estavam em causa. E o futuro MFA tinha oficiais da Marinha, da Força Aérea e do Exército de todo o conjunto de ramos e  especialidades.

 Com o desenvolvimento das reuniões, na Guiné em Agosto de 1973, e depois no Continente, Angola e Moçambique, o MOCAP - Movimento de Capitães/Exército, alargou-se à Armada e à Força Aérea e transformou-se em MFA/Movimento das Forças Armadas. Então, como se pode omitir os nossos intentos reais e denegrir a acção libertadora do MFA que elaborou um Programa Político divulgado a 26 de Abril de 1974?

É absurdo omitir os nossos intentos reais e denegrir a acção libertadora do MFA.Elaborámos um Programa Político divulgado a 26 de Abril de 1974.Programa claro. Apesar de rasurado, à pressa, por Spínola e seus adeptos, no respeitante à Descolonização.

No meio militar,alguns anos antes, havendo já focos dispersos de conspiradores, os núcleos mais vastos e homogéneos,também dinamizadores da contestação, foram formados inicialmente na Guiné-Bissau (Agosto, 1973), em Portugal (Setembro, 1973) e alastraram-se rapidamente a Angola e a Moçambique.

No final de 1973 a conspiração ganhava solidez e tornou-se uma realidade, com os capitães decididos a derrubar o regime ditatorial. Mas, até ao desejado dia da Liberdade, aconteceram muitas peripécias que foram controladas e neutralizadas, ou asfixiadas pela organização e unidade do MFA. Ler por exemplo, 30 anos do 25 de Abril, na transcrição, de Manuel Barão da Cunha, das intervenções dos oradores -militares de Abril – sobre a Conspiração (Vasco Lourenço, Duran Clemente, Aprígio Ramalho) e a Operação (Otelo,Costa Neves,Garcia dos Santos) num encontro e conferência em Oeiras (2005).

 

As Portas que Abril Abriu

Alguns dos sobressaltos, anteriores ao 25 de Abril de 1974, anunciavam já os conflitos que viriam a ocorrer entre essa data e o 25 de Novembro de 1975, no que concerne à tão propagandeada (e verdadeira) divisão entre militares. onto tipo entre o MDP/CDE (PCP) e a CEUD (PS). Estas duas correntes, que estiveram unidas em questões essenciais até ao 28 de Setembro, viriam a divergir no último trimestre de 1974, resolvida a estratégia política (Democratização e Descolonização), e o tentar acertar o passo na estratégica económica (Desenvolvimento). Que não conseguimos atingir.

A 5.ª Divisão do Estado Maior General das Forças Armadas/EMGFA foi idealizada e organizada pela primeira Comissão Coordenadora do Programa do MFA, em Maio/Junho de 1974, na sequência de uma reunião efectuada na Manutenção Militar, na qual António de Spínola, Palma Carlos, Vieira de Almeida e Sá Carneiro fizeram tudo para dissolver o Movimento das Forças Armadas (MFA). À época, a correlação de forças políticas não era totalmente favorável ao MFA, e, neste contexto, a Comissão Coordenadora do Programa (o órgão mais representativo do MFA) era um órgão revolucionário que não encaixava na estrutura militar existente.

Depois da histórica Assembleia do MFA, na noite de 11 de Março de 1975, criaram-se órgãos revolucionários, e a 5ª Divisão/EMGFA pôde então recomeçar a trabalhar com mais tranquilidade, na consolidação do espírito democrático das Forças Armadas, e no alargamento da acção de esclarecimento e actividades cívicas junto das populações. Para isso, criámos o Centro de Sociologia Militar, dedicado à formação de quadros do MFA. Entretanto, a CODICE tinha ampliado as suas actividades no terreno, através das Campanhas de Dinamização Cultural e Esclarecimento Cívico realizadas nos distritos da Guarda, Viseu, Castelo Branco e Bragança, que contribuíram decisivamente para o esclarecimento e a contenção da onda reaccionária nesses distritos.

O contacto da 5.ª Divisão com as necessidades populares, tanto no meio urbano como no meio rural, foi uma realidade histórica, não só por intermédio das campanhas de acção cívica junto das populações, como através das suas estruturas e do Centro de Relações Públicas, ao qual acorriam, diariamente, centenas de pessoas e entidades colectivas: trabalhadores, estudantes, sindicatos, comissões de moradores, pequenas empresas etc., pedindo conselhos e celeridade no encaminhamento para a solução dos mais diversos problemas e carências do Povo Português. A sua intervenção nos órgãos de comunicação social, através de programas radiofónicos diários, em várias estações emissoras, do programa semanal na Radiotelevisão Portuguesa, a par do “Boletim do MFA” foram mecanismos de inegável importância para a tomada de consciência patriótica e revolucionária dos problemas políticos, económicos e sociais que afectavam Portugal.

A 5.ª Divisão incomodou, mas não os revolucionários. Por isso, a tentaram destruir, à boa maneira fascista, ao denunciarem a falta de lealdade para com as opções democráticas e socialistas que diziam partilhar. Quem estava contra a 5.ª Divisão, estava contra o processo revolucionário português.

Mas a democracia representativa é feita de avanços e recuos, e a esta democracia opunham-se outros ânimos e vontades que questionavam “As Portas Que Abril Abriu”. Sentíamos que os poderosos, que haviam perdido privilégios, se organizavam para os recuperar e tudo iriam fazer, com justificações habilidosas (entre as quais o papão do comunismo e da guerra civil). De facto tudo fizeram para criarem a desunião entre os elementos do MFA, com a colaboração dos militares “spinolistas” e dos “saudosistas” que tinham estado de fora da conspiração e da acção libertadora.

A 25 de Abril de 1975 realizaram-se as primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, firmemente defendidas pelo Presidente da República, general Costa Gomes, e pelo MFA, contra quem as considerava prematuras e inconvenientes.  Logo surgiram manifestações significativas por parte de alguns dirigentes socialistas, com destaque para Mário Soares, que começaram a reclamar a legitimidade eleitoral e a questionar a legitimidade revolucionária.Nasceu o embrião do 25 de Novembro, em Julho, e com a saída dos ministros do PS do IV Governo de Vasco Gonçalves. Neste processo emergiram outros actores políticos, os designados “moderados”, que apelidaram os defensores da Revolução de radicais e extremistas. Como convinha!

Todo o chamado “Verão Quente” de 1975 foi incendiado com uma acentuada dissidência entre os que queriam reformas profundas no sistema e os que se contentavam com uma leve brisa de mudança. Uns entendiam que as organizações de base populares poderiam ser os pilares da arquitectura de um novo sistema político-social, enquanto outros se satisfaziam com os modelos tradicionais da Europa liberal. Paralelamente aos avanços revolucionários dos governos do general Vasco Gonçalves, caminhavam, a diferentes velocidades, os militares “ditos moderados” e as forças políticas mais conservadoras (provocadores, extrema-direita, saudosistas, etc.), as de centro-esquerda e as esquerdistas (onde cabiam diversas tendências com graus de consciencialização política díspares).

A partir do momento em que se permitiu que a direita e os saudosistas do passado cavalgassem a seu belo prazer, com apoio directo e/ou indirecto dos militares “ditos moderados”, iniciou-se uma espécie de “cruzada” com o propagandear de um iminente “golpe de esquerda”. Tal ideia parece não ter sentido hoje, mas teve! E serviu de fundamento e justificação para a preparação do golpe contra-revolucionário de 25 de Novembro de 1975. A questão crucial foi que os poderosos de então, das mesmas famílias dos poderosos de hoje, tiveram o braço amigo de uns quantos militares ingénuos, e de todas as forças reaccionárias nacionais e internacionais; que tudo fizeram para travar a genuína REVOLUÇÂO PORTUGUESA. Iniciaram então um processo que podia estar para o 25 de Abril como o 28 de Maio de 1926 esteve para a 1ª República. E só não foi assim porque as circunstâncias eram muito diferentes e alguns militares, apercebendo-se dos perigos que corriam, conseguiram travar os fortes ímpetos de vingança.

As forças progressistas não desistiram, nem desistem, e têm lutado com todo o animo meios disponíveis, apesar da insistência com que o sistema capitalista selvagem e predador tenta liquidar a nossa Liberdade, e matar o nosso 25 de Abril. Que temos de defender e reconquistar todos os dias!

Cinquenta anos volvidos e prudentes na tentação de procurar outras projecções ou lições para a actualidade, posso concluir que apesar do tempo que nos separa da Revolução de Abril, esta permanece viva na nossa memória colectiva pelo valor das convicções que a sustinham. A certeza nos objectivos que orientaram e orientam as nossas utopias, mesmo que não saibamos se algum dia se concretizam, continua a residir na esperança de uma sociedade mais justa.

À luz de políticas criadas no espírito dos Congressos da Oposição, da alvorada libertadora de Abril e das conquistas da Revolução devo recordar o apelo final da carta-testamento de Mário Sacramento:

Derrubem o fascismo, se nós não o pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana. Aprendam com os erros do passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado! Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!

 

Os capitães de Abril iniciaram a Democratização e o Desenvolvimento de Portugal, e as conquistas da Revolução estão consignadas na nossa Constituição, aprovada a 2 de Abril de 1976 sendo de realçar os duzentos Decretos-Leis ,dos quatro governos de Vasco Gonçalves, que configuram essas conquistas.

Portugal e Galiza na luta pela Democracia

Perguntam-me que influências podem ter tido os “antifascistas e democratas galegos” no nosso 25 de Abril. Para todos nós, com maior ou menor formação político-social, todas as lutas são significativas nas vidas dos cidadãos inconformados e de notáveis personalidades - irmãos da Galiza -, ávidos de Liberdade e de uma vida mais justa, - como os meus familiares -, o notável Fidel de Castro, filho do emigrante galego, Angel Castro Argiz, ou como Afonso Castelao que se fez médico por amor a seu pai e não exerceu a profissão por amor à Humanidade.

No seu artigo “O 25 de Abril na Galiza dos anos setenta. Impactos e consequências” (2014), Roberto Samartim diz-nos que para a Galiza, Portugal funcionou como um sistema cultural que os galegos compartilharam ao longo do processo histórico, como a língua, a cultura popular, o sentimento de saudade, o lirismo, e que aspiraram a reencontrar no futuro.. A nível cultural, o reintegracionismo fez-se através da mediação dos agentes lusos na publicação do “Manifesto para a supervivência da cultura galega”, na revista “Seara Nova” de setembro de 1974.

A nível político a UPG - Unión do Pobo Galego, contemplou no seu programa um vínculo federativo peninsular, fazendo depender as suas ações e relacionamentos no interior dos campos culturais, como estratégia, através de diversas actividades cinematográficas e musicais. Por isso, na recepção à Revolução dos Cravos, no número de maio de 1974 da revista “Galicia Emigrante”, a UPG colocou a tónica da unidade cultural galego-portuguesa no passado, para acentuar a identidade das lutas políticas em curso.

Importa ainda destacar, do artigo de Roberto Samartim, que os relacionamentos reforçados depois da Revolução de Abril foram favorável à Galiza, por a esquerda revolucionária portuguesa aceitar os repertórios nacionalistas promovidos pela UPG.

Desta maneira, o principal impacto da Revolução de Abril na esquerda nacionalista galega centrou-se talvez no reforço e consolidação das redes de relações políticas e culturais iniciadas antes de 1974, que ainda hoje se mantêm. E como descendente de galegos, eu, um Duran - capitão de Abril -, no ano dos 50º Aniversário daquela “alvorada límpida e pura”, não posso terminar este texto sem homenagear os resistentes antifranquistas e todos os democratas da terra da minha “nai”/mãe, que continuam a lutar e a acreditar numa sociedade mais justa: Amo-te Galiza!

 

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