A GALIZA TEM RAÍZES NA LIBERDADE DE ABRIL
Manuel Duran Clemente
(Capitão de Abril)
O
caminho faz-se caminhando…
Este capitão de Abril é
filho de Aldina Duran Clemente,
nascida em Moscoso/Redondela (Pontevedra) a 24 de Agosto de 1920, e corre-lhe
nas veias o sangue galego. Mas foi na quinta de Santa Rita, em Palença de
Cima (Almada) que nasceu, na véspera de S. Pedro de 1942, na casa da tia-avó Maria Dolores Duran (também natural de Moscoso).
A minha mãe foi criada por ela desde os dezoito meses, porque Dolores não teve descendentes
e podia proporcionar melhor futuro à sobrinha, do que a minha avó Maria, que
vivia com muitos filhos e dificuldades na aldeia de Moscoso. Aos 21 anos a
minha “nai” casou com um militar garboso, um furriel beirão, natural do Fundão.
Quando nasci, o meu pai estava destacado no Faial (Açores), vivíamos o tempo da
II Guerra Mundial. Onze anos
mais tarde, o futuro capitão de Abril saía ao sábado do Instituto dos Pupilos
do Exército, em S. Domingos de Benfica, e atravessava o rio Tejo nos
cacilheiros rumo a Cacilhas. Ali tomava a
camioneta até Palença de Cima e entrava no portão alto de ferro da quinta de
Santa Rita, já noite. Então caminhava entre o portão e a casa assobiando
arrepiado… e era este assobio que me animava a esperança de bons encontros: “- Querida
tia-avó!”… - Chegaste Manolo?”… “- Cheguei, minha querida madrinha!”. Viver
largos tempos na quinta onde nasci, e frequentei até à adolescência,
desenvolveu-me o gosto pela terra. E a Natureza foi a minha primeira
Universidade.
Na década de 1960 fiz parte do grupo de
militares que beneficiaram da reforma educativa de 1959 e tiveram acesso a
licenciaturas na Academia Militar. Os jovens oficiais das Forças Armadas
adquiriram então uma compreensão e uma leitura reflexiva da realidade e do
mundo, e quando foram destacados para a Guerra Colonial em 1961 ocorreu toda
uma dialéctica e questionamento do sentido daquela guerra sangrenta e inútil
(como todas as guerras), que se prolongou por treze anos, opondo os movimentos
de libertação africanos ao domínio colonial português.
As experiências vividas desmentiam a
propaganda oficial do regime de Salazar, que foi incapaz de negociar uma
solução política condigna para a independência das colónias no contexto do pós
II Guerra Mundial. O ditador conseguiu sobreviver à derrota do nazi-fascismo,
ancorado num discurso anticomunista que se tornou hegemónico e ocidental. A década
de 1960 anunciava rupturas e reclamava a urgência da mudança, com movimentos
sociais contra o racismo, pela liberdade, igualdade e direitos humanos. Destes
anos prósperos em ideias e sonhos, de lutas políticas e culturais travadas na
Europa e no resto do mundo, recordo as frases célebres de Luther King (“I have a dream”, 1963), do Maio de 68 "Seja realista, exija o impossível!”,
do movimento Hippie (“peace and love” e “ban the bomb”), como gritos da revolta que inspiraram a minha
geração, ampliados nas canções de Bob Marley, Angela Davis, Bob Dylan, Janis
Joplin e tantos outros, ou na voz da guitarra de Jimi Hendrix. Neste contexto,
os militares do quadro permanente, forjados numa nova cultura militar e na
contracultura civil, não podiam ficar indiferentes aos ventos da mudança e, uma
minoria esclarecida, conseguiu consciencializar os mais distraídos e cativá-los
para a Revolta.
Em 1968 já conspirava com outros
capitães (Luís Macedo,Pinto Soares, Mendonça Frazão, Borges Correia…) na
Direcção da Arma de Engenharia/ Serviço Fortificações e Obras Militares/DSFOM,
onde fui colocado. E após a minha primeira comissão na colónia de Moçambique
(1969-1971) regressei novamente à DSFOM, por mais dois anos e meio. A 1 de
Abril de 1973 enviei um requerimento ao Ministro do Exército, ao abrigo do
Art.º 12º do Estatuto do Oficial do Exército, solicitando a saída do Quadro
Permanente (QP), onde ingenuamente denunciava o obscurantismo e a falta de
liberdade do regime, através de uma longa reflexão filosófica da que destaco os
seguintes excertos:
(…) À medida que caminho, a cada interrogação que profiro, eu obtenho
sua resposta… Vou sentindo que a vida se me escapa… que vou morrendo aos
pedaços, pouco a pouco, deixando de ser “eu“. Corrói-me a própria resignação
imposta, destrói-me o próprio conformismo imposto… Todo este meu lutar é de
resultado supérfluo, todo ele é o construir duma armadura que me cegue, que me
transforme para poder caminhar sem ver para onde, nem como. Assim, a própria
atmosfera é a minha prisão. Sou como condenado arrastando pesadas grilhetas… em
vão. Só me resta agir, agir para que este “em vão” se torne precioso, útil.
(…).
No mesmo ano, José Medeiros Ferreira,
destacado dirigente do movimento académico estudantil de 1962, exilado em
Genebra, também compreendeu que a guerra colonial estava a desgastar os
militares e teve a liberdade intelectual para trabalhar essa ideia, como uma
possibilidade de derrubar a ditadura. A dissertação apresentada no III Congresso
da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, pela sua companheira Maria Emília
Brederode dos Santos, anunciava que seriam as Forças Armadas a terminar com a
guerra colonial e a derrubarem o regime. A tese pode não ter reunido o consenso
da oposição, mas a ideia foi lavrada nas conclusões do congresso e germinou em
outras latitudes materializando-se no golpe militar de 25 de Abril de 1974,
consagrando-se nos três Ds: “Descolonizar,
Democratizar e Desenvolver” do “Programa do MFA”.
Nas Forças Armadas desenvolvia-se um
largo movimento de consciência democrática entre os militares, oficiais
intermédios do QP/Quadro Permanente, através de encontros e discussões
pronunciadoras. Uma dezena de oficiais da Armada, e apenas eu do Exército,
estivemos presentes clandestinamente no III Congresso da Oposição Democrática
em Aveiro. No meu caso, aproveitei para distribuir o requerimento anteriormente
citado, e as hierarquias militares, com receio de criarem uma “vítima” numa
época de contestação generalizada, não oficializaram uma punição formal mas
apressaram a minha “deportação” (em comissão militar) para a Guiné-Bissau, a 30
de Julho de 1973.
A mobilização popular e a luta pela
liberdade ajudaram-nos a compreender muitos aspectos programáticos, retomados
um ano depois nos textos do MFA e na luta do Portugal de Abril, que não
nasceram por geração espontânea ou por uma aceleração artificial da história,
mas na continuidade dos processos de luta de diferentes movimentos democráticos
da oposição à ditadura.
A capacidade organizativa dos capitães
que fizeram a Revolução de Abril resultou da estreita unidade conseguida em
torno de um objectivo comum, assente em duas razões primordiais:
1) Acabar
com a Guerra Colonial;
2) Libertar
o país da Ditadura.
Se uns foram mais incitados pela primeira das razões, outros
foram pela segunda, que era fundamental à concretização da primeira. O protesto
inicial poderia ter tido essa componente relativamente às três Armas do
Exército (Infantaria, Cavalaria e Artilharia), que eram afectadas pelo
Decreto-Lei 353/73, mas a tentativa de denegrir-nos cai por terra por quatro
razões:
1º - As reivindicações e críticas ao
Poder Fascista foram assinadas por oficiais (capitães e subalternos) de todas
as Armas e Serviços. Para além dos que estavam em causa. E o futuro MFA tinha
oficiais da Marinha, da Força Aérea e do Exército de todo o conjunto de ramos e
especialidades.
2º - Com o desenvolvimento das
reuniões, na Guiné em Agosto de 1973, e depois no Continente, Angola e
Moçambique, o MOCAP - Movimento de Capitães/Exército, alargou-se à Armada e à
Força Aérea e transformou-se em MFA/Movimento das Forças Armadas.
3º - Na tentativa de sermos “comprados”
o Salazarismo/Caetanismo aumentou os vencimentos unicamente aos militares com o
posto de capitão (Exército e Força Aérea) ou de primeiro tenente (Armada). Nas
colónias o aumento foi de 6.000 para 9.000 escudos, e na Metrópole em igual
proporção. A conspiração continuou denunciando a chantagem, porque o objectivo
não era mudar de vida, mas de política. Em consequência mudou a vida para
todos, e para os jovens mancebos.
4º - Então, como se pode omitir os
nossos intentos reais e denegrir a acção libertadora do MFA que elaborou um
Programa Político divulgado a 26 de Abril de 1974?
Programa claro. Apesar de rasurado, à
pressa, por Spínola e seus adeptos, no respeitante à Descolonização.
No meio militar,alguns anos antes, havendo já focos
dispersos de conspiradores, os núcleos mais vastos e homogéneos,também
dinamizadores da contestação, foram formados inicialmente na Guiné-Bissau
(Agosto, 1973), em Portugal (Setembro, 1973) e alastraram-se rapidamente a
Angola e a Moçambique. À medida que os militares concluíam as suas missões nas
colónias, e outros partiam para elas, aumentava o intercâmbio do movimento
conspiratório.
No final de 1973 a conspiração ganhava
solidez e tornou-se uma realidade, com os capitães decididos a derrubar o
regime ditatorial. Mas, até ao desejado dia da Liberdade, aconteceram muitas
peripécias que foram controladas e neutralizadas, ou asfixiadas pela
organização e unidade do MFA. O mais significativo desses intentos foi a
divulgação, por parte do tenente-coronel Carlos Fabião (em Janeiro de 1974), no
Instituto de Altos Estudos Militar, da preparação de um golpe pelo general
conservador Kaúlza de Arriaga. Bem como a precipitada tentativa de golpe
militar, falhado, de 16 de Março de 1974, de spinolistas apressados. Mas sobre
isso está quase tudo escrito. Quase!
Ler por exemplo, 30 anos do 25 de Abril, na transcrição, de Manuel Barão da Cunha,
das intervenções dos oradores -militares de Abril – sobre a Conspiração
(Vasco Lourenço, Duran Clemente, Aprígio Ramalho) e a Operação (Otelo,Costa
Neves,Garcia dos Santos) num encontro e conferência em Oeiras (2005).
As Portas que Abril Abriu
Alguns dos sobressaltos, anteriores ao 25 de Abril de 1974,
anunciavam já os conflitos que viriam a ocorrer entre essa data e o 25 de
Novembro de 1975, no que concerne à tão propagandeada (e verdadeira) divisão
entre militares. Por um lado, Spínola fazia avançar os seus homens de confiança
para travar os objectivos mais amplos do MFA. Por outro, Otelo (que começou a
conspiração comigo e outros, como Salgueiro Maia, por exemplo, em Bissau)
denunciava algumas das suas contradições. Para além dos futuros “Melo
Antunistas” e “Gonçalvistas” era nítida a influência de posições ou simpatias
ideológicas demarcadas, no confronto tipo entre o MDP/CDE (PCP) e a CEUD (PS).
Estas duas correntes, que estiveram unidas em questões essenciais até ao 28 de
Setembro, viriam a divergir no último trimestre de 1974, resolvida a estratégia
política (Democratização e Descolonização), e o tentar acertar o passo na
estratégica económica (Desenvolvimento). Que não conseguimos atingir.
A reprovação “precipitada”, pela
Assembleia do MFA, do “Programa de Política Económica e Social” (Plano Melo Antunes),
aprovado a 7 de Fevereiro em Conselho de Ministros, agudizou a situação
política que veio a ser mais contundente com a provocação da “Spínolada” a 11 de Março de 1975. Neste contexto,
importa salientar a importância da mobilização das massas populares e a acção
desmobilizadora da 5ª Divisão sobre os militares pára-quedistas, que operou
através dos microfones da Emissora Nacional. A equipa do seu Centro de
Esclarecimento e Informação Pública/CEIP - sector da Rádio e Televisão,
coordenado por mim, colocou-me a dar voz a um comunicado decisivo e oportuno.
Porque, conjuntamente com a acção serena do capitão de Abril, Dinis Almeida -oficial
do quartel RAL 1, já atacado por aeronaves- o meu aviso aclarou o tentado
golpe, deu o alerta a todos, sobretudo aos ludibriados paraquedistas, vindos de
Tancos e seduzidos pela mentira e raiva contra-revolucionária spinolista, preparados
para atacar por terra, e assim se conteve a contra-revolução chefiada por
Spínola e o seu MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal).
A 5.ª Divisão do Estado Maior Geral das
Forças Armadas foi idealizada e organizada pela primeira Comissão Coordenadora
do Programa do MFA, em Maio/Junho de 1974, na sequência de uma reunião
efectuada na Manutenção Militar, na qual António de Spínola, Palma Carlos,
Vieira de Almeida e Sá Carneiro fizeram tudo para dissolver o Movimento das
Forças Armadas (MFA).
À época, a correlação de forças
políticas não era totalmente favorável ao MFA, e, neste contexto, a Comissão
Coordenadora do Programa (o órgão mais representativo do MFA) era um órgão
revolucionário que não encaixava na estrutura militar existente. Recordar a
função histórica da 5.ª Divisão significa enaltecer a sua acção como uma
trincheira na defesa da Comissão Coordenadora do MFA,e do seu Programa, bem
como do espírito revolucionário de vanguarda que a orientava.
Depois da histórica Assembleia do MFA,
na noite de 11 de Março de 1975, criaram-se órgãos revolucionários, e a 5ª
Divisão/EMGFA pôde então recomeçar a trabalhar com mais tranquilidade, na
consolidação do espírito democrático das Forças Armadas, e no alargamento da
acção de esclarecimento e actividades cívicas junto das populações. Para isso,
criámos o Centro de Sociologia Militar, dedicado à formação de quadros do MFA. Entretanto,
a CODICE tinha ampliado as suas actividades no terreno, através das Campanhas
de Dinamização Cultural e Esclarecimento Cívico realizadas nos distritos da
Guarda, Viseu, Castelo Branco e Bragança, que contribuíram decisivamente para o
esclarecimento e a contenção da onda reaccionária nesses distritos.
O contacto da 5.ª Divisão com as
necessidades populares, tanto no meio urbano como no meio rural, foi uma
realidade histórica, não só por intermédio das campanhas de acção cívica junto
das populações, como através das suas estruturas e do Centro de Relações
Públicas, ao qual acorriam, diariamente, centenas de pessoas e entidades
colectivas: trabalhadores, estudantes, sindicatos, comissões de moradores,
pequenas empresas etc., pedindo conselhos e celeridade no encaminhamento para a
solução dos mais diversos problemas e carências do Povo Português. A sua
intervenção nos órgãos de comunicação social, através de programas radiofónicos
diários, em várias estações emissoras, do programa semanal na Radiotelevisão
Portuguesa, a par do “Boletim do MFA” (cuja tiragem atingiu os 120 mil
exemplares) foram mecanismos de inegável importância para a tomada de
consciência patriótica e revolucionária dos problemas políticos, económicos e
sociais que afectavam Portugal.
A 5.ª Divisão foi um órgão que sempre
proclamou a austeridade revolucionária, e desde a primeira hora reclamou o
primado da competência e da inteligência. Por isso, a sua existência tornou-se
incómoda e oposta aos objectivos do exercício irrestrito do poder de alguns. A
5.ª Divisão incomodou, mas não os revolucionários. Por isso, a tentaram
destruir, à boa maneira fascista, ao denunciarem a falta de lealdade para com
as opções democráticas e socialistas que diziam partilhar. Quem estava contra a
5.ª Divisão, estava contra o processo revolucionário português.
Mas a democracia representativa é feita
de avanços e recuos, e a esta democracia opunham-se outros ânimos e vontades que
questionavam “As Portas Que Abril Abriu”. Sentíamos que os poderosos, que
haviam perdido privilégios, se organizavam para os recuperar e tudo iriam
fazer, com justificações habilidosas (entre as quais o papão do comunismo e da
guerra civil). De facto tudo fizeram para criarem a desunião entre os elementos
do MFA, com a colaboração dos militares “spinolistas” e dos “saudosistas” que
tinham estado de fora da conspiração e da acção libertadora.
Todo o chamado “Verão Quente” de 1975
foi incendiado com uma acentuada dissidência entre os que queriam reformas
profundas no sistema e os que se contentavam com uma leve brisa de mudança. Uns
entendiam que as organizações de base populares poderiam ser os pilares da
arquitectura de um novo sistema político-social, enquanto outros se satisfaziam
com os modelos tradicionais da Europa liberal. Paralelamente aos avanços
revolucionários dos governos do general Vasco Gonçalves, caminhavam, a
diferentes velocidades, os militares “ditos moderados” e as forças políticas
mais conservadoras (provocadores, extrema-direita, saudosistas, etc.), as de
centro-esquerda e as esquerdistas (onde cabiam diversas tendências com graus de
consciencialização política díspares).
A 25 de Abril de 1975 realizaram-se as
primeiras eleições livres, para a Assembleia Constituinte, firmemente
defendidas pelo Presidente da República, general Costa Gomes, e pelo MFA,
contra quem as considerava prematuras e inconvenientes. O Partido Socialista venceu as eleições com 37,87%
dos votos, seguido pelo então PPD com 26,39%, e do PCP com apenas 12,46%. Logo
surgiram manifestações significativas por parte de alguns dirigentes
socialistas, com destaque para Mário Soares, que começaram a reclamar a
legitimidade eleitoral e a questionar a legitimidade revolucionária. Assim
nasceu o embrião do 25 de Novembro na Alameda D. Afonso Henriques, em Julho, e
com a saída dos ministros do PS do IV Governo de Vasco Gonçalves. Neste
processo emergiram outros actores políticos, os designados “moderados”, que apelidaram
os defensores da Revolução de radicais e extremistas.
A partir do momento em que se permitiu
que a direita e os saudosistas do passado cavalgassem a seu belo prazer, com
apoio directo e/ou indirecto dos militares “ditos moderados”, iniciou-se uma
espécie de “cruzada” com o propagandear de um iminente “golpe de esquerda”. Tal
ideia parece não ter sentido hoje, mas teve! E serviu de fundamento e
justificação para a preparação do golpe contra-revolucionário de 25 de Novembro
de 1975. A questão crucial foi que os poderosos de então, das mesmas famílias
dos poderosos de hoje, tiveram o braço amigo de uns quantos militares ingénuos,
e de todas as forças reaccionárias nacionais e internacionais; que tudo fizeram
para travar a genuína REVOLUÇÂO PORTUGUESA. Iniciaram então um processo que
podia estar para o 25 de Abril como o 28 de Maio de 1926 esteve para a 1ª
República. E só não foi assim porque as circunstâncias eram muito diferentes e
alguns militares, apercebendo-se dos perigos que corriam, conseguiram travar os
fortes ímpetos de vingança.
Neste contexto, foi exemplar a
intervenção de Melo Antunes e a acção posterior de alguns dos militares
moderados, como Vasco Lourenço, Pezarat Correia, Victor Alves, Victor Crespo,
Sousa Castro, Costa Neves, e até de Ramalho Eanes. Para além disso, as forças
progressistas não desistiram, nem desistem, e têm lutado com todas as forças e
meios disponíveis, apesar da insistência com que o sistema capitalista selvagem
e predador tenta liquidar a nossa Liberdade, e matar o nosso 25 de Abril. Que
temos de defender e reconquistar todos os dias!
Cinquenta
anos volvidos e prudentes na tentação de procurar outras projecções ou lições
para a actualidade, posso concluir que apesar do tempo que nos separa da
Revolução de Abril, esta permanece viva na nossa memória colectiva pelo valor
das convicções que a sustinham.
A certeza nos objectivos que orientaram
e orientam as nossas utopias, mesmo que não saibamos se algum dia se
concretizam, continua a residir na esperança de uma sociedade mais justa.
Hoje, podemos interrogar-nos sobre a
quantidade de temas que ainda aguardam e reclamam por novos entendimentos à
esquerda (à luz de políticas criadas no espírito dos Congressos da Oposição, da
alvorada libertadora de Abril e das conquistas da Revolução). Por isso, recordo
o apelo final da carta-testamento de Mário Sacramento:
Derrubem o fascismo, se nós não o
pudermos fazer antes! Instaurem uma sociedade humana. Aprendam com os erros do
passado. E lembrem-se de que nós, os mortos, iremos, nisso, ao vosso lado!
Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!
Os capitães de Abril iniciaram a Democratização e o
Desenvolvimento de Portugal, e as conquistas da Revolução estão consignadas na
nossa Constituição, aprovada a 2 de Abril de 1976 sendo de realçar os duzentos
Decretos-Leis ,dos quatro governos de Vasco Gonçalves, que configuram essas
conquistas.
Portugal e Galiza na luta pela Democracia
Perguntam-me que influências podem ter
tido os “antifascistas e democratas galegos” no nosso 25 de Abril. Para todos
nós, com maior ou menor formação político-social, todas as lutas são
significativas nas vidas dos cidadãos inconformados e de notáveis
personalidades - irmãos da Galiza -, ávidos de Liberdade e de uma vida mais
justa, - como os meus familiares -, o notável Fidel de Castro, filho do
emigrante galego, Angel Castro Argiz, ou como Afonso Castelao que se fez
médico por amor a seu pai e não exerceu a profissão por amor à Humanidade.
(…) A figura de Afonso Castelao
representa un fito fundamental na historia da literatura galega e, ao tempo,
constitúe peza clave tamén na concreción e evolución do nacionalismo galego da
primeira metade do século XX. Ambas as contribucións, a de artista e a de
político, enténdense moito mellor ligadas, nunha vertente de intercomunicación
ou, se quixermos, de decantación progresiva.. Curiosamente a experiencia da
emigración percorre toda a existencia de Castelao, mais enmárcaa dun xeito
nidio. (…) Acabará sufrindo a emigración forzosa, a experiência do exilio, nos
últimos anos da súa vida. Que lle permite coñecer tamén a vida de moitos
galegos “desterrados” en Portugal, Brasil, EEUU, Cuba, México, Arxentina ou
Uruguai. De regreso a Rianxo, xusto co inicio do século, Castelao vai cursar o
bacharelato e, tres anos despois, a carreira de Medicina, aínda que pouco tempo
despois renunciará a exercer a profesión (“fíxenme
médico por amor ao meu pai. Non exerzo a profesión por amor á humanidade”),
e só axudará circunstancialmente como médico rural nas epidemias de gripe que
se producen na segunda década do século.
No seu artigo “O 25 de
Abril na Galiza dos anos setenta. Impactos e consequências” (2014), Roberto
Samartim diz-nos que para a Galiza, Portugal
funcionou como um sistema cultural que os galegos compartilharam ao longo do processo
histórico, como a língua, a cultura popular, o sentimento de saudade, o
lirismo, e que aspiraram a reencontrar no futuro. Neste contexto relacional a
Revolução de Abril produziu o estancamento nas relações galaico-portuguesas: na
desconexão com os agentes lusos do galeguismo, e com maior presença do
reintegracionismo no sistema cultural português. A nível cultural, o
reintegracionismo fez-se através da mediação dos agentes lusos na publicação do
“Manifesto para a supervivência da cultura galega”, na revista “Seara Nova” de
setembro de 1974.
A nível político a UPG - Unión do Pobo
Galego, contemplou no seu programa um vínculo federativo peninsular, fazendo
depender as suas ações e relacionamentos no interior dos campos culturais, como
estratégia, através de diversas actividades cinematográficas e musicais. Por
isso, na recepção à Revolução dos Cravos, no número de maio de 1974 da revista
“Galicia Emigrante”, a UPG colocou a tónica da unidade cultural
galego-portuguesa no passado, para acentuar a identidade das lutas políticas em
curso:
A UPG (...) vive niste intre unhas das
eisperencias máis fermosas da súa hestoria: o país fraternal que é Portugal ven
de aniquilar o feixismos e camiña cara á democracia. Todo o pobo galego vibra
de solidaridade i entusiasmo. Os muros das aldeas e cidades de Galicia cóbrense
de letreiros nos que se le VIVA PORTUGAL! Xamáis a concencia da antigua unidade
cultural galego- portuguesa foi tan lúcida no corazón das masas oprimidas da
nación galega. Xamáis o sentimento de que a vosa loita é a nosa loita foi tan
fonda e cordialmente asumida por toda a xeografía galega (“Carta de UPG pra
Portugal”, Galicia Emigrante, 3, 1974, p. 7).
Importa ainda destacar, do artigo de Roberto Samartim, que
os relacionamentos reforçados depois da Revolução de Abril foram favorável à
Galiza, por a esquerda revolucionária portuguesa aceitar os repertórios
nacionalistas promovidos pela UPG. Ao nível da imprensa galega, e da sua
influência na consciencialização politica dos cidadãos, destaco o “Faro de Vigo”, por ter prestado
especial atenção à formação do Governo português, ao início do processo de
descolonização, à figura do general António de Spínola, e às tomadas de posição
da esquerda revolucionária.
Desta maneira, o principal impacto da
Revolução de Abril na esquerda nacionalista galega centrou-se talvez no reforço
e consolidação das redes de relações políticas e culturais iniciadas antes de
1974, que ainda hoje se mantêm. E como descendente
de galegos, eu, um Duran - capitão de Abril -, no ano dos 50º Aniversário
daquela “alvorada límpida e pura”, não posso terminar este texto sem homenagear
os resistentes antifranquistas e todos os democratas da terra da minha
“nai”/mãe, que continuam a lutar e a acreditar numa sociedade mais justa: Amo-te Galiza!
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