Os capitães de Abril: da geração de 60 à guerra colonial (2004) - de Duran Clemente
1. OS CAPITÃES de ABRIL
....da geração de sessenta à guerra colonial...
....da conspiração ao 25 de Abril
O sentimento comum e fortemente enraizado na maioria dos capitães dos três ramos das FFAA era de “mal-estar” e desencanto, muitas vezes de revolta há já uns anos se tomarmos como referência o ano de 1973,o ano da gestação de tudo o que fizemos para a queda da ditadura em 25 de Abril de 1974.
Digamos que a partir de meados dos anos sessenta, após os primeiros anos de guerra, os oficiais do Quadro Permanente ( Q.P.) despertaram para uma consciencialização mais aguda e mais clara das contradições e da “mentira” do sistema, do regime político que nos desgovernava.
Não é por acaso que é corrente ouvir-se dizer entre nós próprios: “os primeiros anos de guerra colonial ainda se entenderam”, levados pelo espirito de missão e de defesa da Pátria, tão arreigados na nossa formação. Mas pouco tardou em perceber-se que era urgente uma solução política. Nunca se aceitou que essa solução não tenha sido obtida e o consequente atraso no desenvolvimento do país e abertura ao mundo se tenham arrastado por longos treze anos de “luta armada”.
Os militares (capitães e não só) aperceberam-se de que os seus problemas eram pequenas contradições de uma contradição mais vasta: o próprio regime português.
Foi o assumir de uma missão nacional na continuação da luta há muito travada pelo próprio povo.
Não foi por medo da guerra que os capitães conspiraram em Portugal, na Guiné, em Angola e Moçambique...capitães que andavam nessa mesma guerra há seis, oito ou doze anos...Já se tinha habituado à guerra, conheciam-na por dentro e por fora e por isso lhe tinham respeito.
Nas suas unidades militares e nos matos africanos conviviam com as dificuldades, com as realidades, com as contradições, com a sua capacidade de decisão e de imaginação...Conviviam também com as camadas mais politizadas vindas das universidades a reflectir em comum, a interrogarem-se, a porem em questão aquela guerra e o regime que a impunha.
Entre duas baladas ou canções do Zeca Afonso, do Adriano, do Luís Cilia ,do Mário Branco ou ouvindo o “cancioneiro do Niassa”, interrogavamo-nos: guerra colonial porquê? Para quê? Em proveito de quem?
O 25 de Abril não é certamente um produto linear e imediato dos anos sessenta. Tem as suas raízes históricas, sociais e militares em causas profundas. Mas terá no mínimo sido animado pela mentalidade daquela geração que tão decisiva terá sido para agrupar os homens que, vendo reunidas todas as condições para que o seu país acertasse o passo pela história não quiseram faltar à chamada que esta lhes fez.
A geração dos anos sessenta desenvolve-se na Europa e em Portugal, num ambiente que tinha com principais pontos de referência o “Maio de 68”,as manifestações pacifistas contra a guerra do Vietname e as lutas pelos direitos cívicos.
Foi um período dominado pela contestação da Juventude.
Juventude que tudo punha em causa, arvorando como bandeira a recusa e até humilhação atrevida das estruturas estabelecidas no poder, na escola, na empresa, na igreja, na família...
Nós jovens capitães (capitães de Abril) éramos dessa geração e não podemos deixar de ter sido sensíveis às suas influências.
Mas...
Mas o que haveria de constituir o factor decisivo na formação política desta geração de oficiais seria a guerra colonial.
A influência da guerra colonial na nossa consciencialização levanta (segundo o pensamento de alguns de nós) três aspectos particulares que merecem ser sublinhados:
- Guerras injustas. Guerras perdidas.
- A acção psicossocial.
- Militares e capitães libertadores. Porquê ?
(a) Guerras injustas. Guerras Perdidas.
Outros mais poderosos tinham-nas perdido. A França na Indochina e depois na Argélia. Os Estados Unidos no Vietname.
O argumento que o poder exibia de que o caso português era diferente, que Portugal contava com o apoio das populações das colónias conduz-nos directamente ao segundo aspecto particular que importa detalhar: a acção psicossocial.
(b) A “apsico”.
Mais do que a disputa por terreno a disputa por populações é que estava em causa.
A acção psicossocial (entre nós militares conhecida pela “apsico” )dirigida ao dito inimigo e às populações naturais acabou por se tornar num “boomerang” que se virou contra a própria política colonial.
Os militares para desempenharem esta missão tiveram de contactar cada vez mais intimamente a realidade das sociedades indígenas. Facilmente se aperceberam das gritantes injustiças da relações coloniais e da violência e da enorme mentira que estava escondida atrás da propaganda oficial do regime.
Os militares ter-se-ão convencido que estavam a combater na guerra errada. Afinal o seu inimigo estava no Terreiro do Paço.
Muitos militares se terão compenetrado da legitimidade dos africanos na sua luta de libertação.
Surge-nos então o terceiro aspecto.
(c) Militares libertadores e capitães, porquê ?
Os alvos mais atingidos pela “apsico” acabaram por ser aqueles que não constavam nos planos, isto é, os comandantes de companhia .
O papel que se desempenhava, como tal, numa guerra com as características da guerra subversiva. Capitães que tinham adquirido uma relação extremamente intensa:
Quer com os homens que comandavam;
Quer mesmo no conflito com as hierarquias militares;
Quer ainda com as próprias populações.
Havíamos adquirido nas sucessivas intervenções em África uma grande capacidade operacional aliada a efectivos poderes de decisão.
Como comandantes de companhia os capitães eram os executantes directos de toda a gama de actividade e pelas suas mãos passava tudo quanto tinha a ver com uma vasta área de responsabilidade. A companhia era a pedra angular da quadrícula.
Capitães que tinham de contar essencialmente consigo próprios, com a capacidade de decisão e de imaginação para solucionar os inúmeros problemas nos mais variados campos de actuação:operacional,administrativo,logistico,disciplinar,bem-estar das tropas, relações com as autoridades administrativas, contacto e apoio às populações...
Isto dava lugar a frequentes conflitos com escalões superiores e era potencialmente gerador dum clima de desconfiança.
Todo o capitão (ou quase todos)tinha tendência a convencer-se de que era empurrado para aquelas situações pela incompetência ou desinteresse de grande parte dos seus chefes nos seus gabinetes na cidade e a centenas de quilómetros de distância.
A situação e o clima psicológico e natural eram propícios a essa desconfiança mesmo que nalguns casos fosse injusta para com certas chefias e escalões superiores que não alinhassem na posição oficial.
Esta é uma tese, haverá outras, de que o somatório destes três aspectos da guerra:
· as experiências estrangeiras que demostravam a sua inviabilidade;
· a acção psicossocial e o efeito “boomerang”;
· o papel do capitães que vincava as suas personalidades
fizeram da guerra colonial o factor decisivo na formação desta geração de capitães...geração dos “capitães de Abril” que bem se pode afirmar como sendo a
conjugação dum “caracter” com uma “consciencialização”
rumo à libertação do País e dum Povo.
...( este relato pretende ser apenas um contributo, com uma perspectiva pessoal e vivida pelo autor,, para que outros surjam a fim de compilar-se um trabalho que se aproxime dos acontecimentos então vividos...é pois um desafio a quantos tiverem coisas para contar )....
2. A conspiração dos Capitães na Guiné-Bissau
Com o capitulo anterior “A geração dos Capitães de Abril “ procurei esboçar o enquadramento para se entender melhor o depoimento seguinte do que foi a conspiração dos Capitães na Guiné.
A ideia lançada de que a “revolta dos capitães” começou na Guiné não merece discussão. Têm tanta razão os que a defendem como os outros. A revolta começou em cada um de nós, o espaço não foi temporal nem fisicamente circunscrito a uma qualquer latitude, mas de facto a Guiné marcou muito os militares e era ressonante o seu efeito como um vulcão de conflitos e desafios.
Efectivamente na Guiné viviam-se tempos favoráveis à reflexão e ao debate. De forma mais aberta ou mais reservada a contestação convivia com a humidade e o calor tropicais. Seria injusto não reconhecer a quota parte que se deve à personalidade do General Spinola na criação desse ambiente. As circunstâncias fizeram o resto; tornaram a colónia da Guiné um laboratório de experiências e de vivências particulares. Muito pelo seu clima, muito pelo seu tamanho, muito pelo abandono do colonizador e bastante pela forma de actuação do PAIGC e do seu líder Amilcar Cabral.
Talvez se deva considerar, como primeira pedrada no charco, na Guiné- Bissau, a reacção e repudio dos Oficiais do Quadro Permanente ao “ Congresso dos Combatentes do Ultramar”. Almeida Bruno, Dias de Lima, Monge, Otelo e outros, puseram ao corrente o general Spínola do descontentamento que se apoderou dos Oficiais em geral. Tratava-se dum Congresso, que mais não era do que uma encenação do governo com o aproveitamento de antigos oficiais milicianos, que desde 1961 haviam cumprido comissões militares no Ultramar. Esse descontentamento chegou a Lisboa pela via hierárquica mas não só. Chegou também a Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e a Vasco Lourenço, que encabeçavam na Metrópole, um vasto movimento de protesto.
Quatrocentas assinaturas de Oficiais do Q.P., assinaram em Bissau, protesto idêntico ao ocorrido no Continente.
Um telegrama de Bissau foi enviado para o Porto, onde se realizaria o dito evento (de 1 a 3 de Junho de 1973) assinado por Marcelino da Mata e Rebordão de Brito ( Oficiais naturais da Guiné, ambos com a “Torre e Espada” ) com o seguinte texto:
“ Os oficiais do Q. P. Em serviço no teatro de operações da Guiné:
1. Não aceitam outros valores nem defendem outros interesses que não sejam os da Nação;
2. Não reconhecem aos organizadores do I Congresso dos Combatentes do Ultramar, e portanto ao próprio Congresso, a necessária representatividade;
3. Não participando nos trabalhos do Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes;
4. Por todas as razões formuladas se consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso, independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão.”
A este propósito no seu livro “Alvorada em Abril” é com oportunidade que Otelo afirma a pgs. 114: “ Esta autêntica manifestação colectiva poderia ter constituído um sério sinal de alerta para o Regime “ que conclui o parágrafo dedicado ao Congresso, dizendo ainda “ os jovens leões rugiram, manso, a princípio. Ganhando consciência da sua força, foram deitando as garras de fora e, rugindo mais forte, lançaram-se ao ataque. A partir daí, quem poderia realmente travar o seu desenfreado galope? “
Estava pois criado o ambiente e lavrado o terreno para o que viria a seguir.
Cheguei a Bissau a 28 de Julho de 1973.
***
O meu companheiro de viagem e de lugar no avião, que então me levou para a Guiné , foi o Capitão Piloto-Aviador Pinto Ferreira.
Ainda que contemporâneos na Academia Militar (1961/64) já não nos víamos há muitos anos. Fixava-me com olhar inquieto. Estava do lado da janela e nunca olhou o céu. Regressava após meses antes, ao seguir atrás do “Fiat” do seu comandante, Ten.Coronel Alves Brito, assistir ao desintegrar do avião em estilhas e chamas. Escapou porque ao ver o reflexo, de algo vindo do solo, guinou instintivamente o seu “Fiat” (avião-parelha) que conduzia. Foi isto que me contou, acrescentando em desabafo: “vai ser difícil esquecer”!!!
***
Na noite do dia seguinte , à minha chegada, reunimo-nos no Agrupamento de Transmissões depois de jantar. Consta do registo das presenças os seguintes nomes e especialidades dos militares reunidos. Capitães do quadro: Jorge Golias (Eng.Transmissões),Duran Clemente(Administração Militar),Matos Gomes (Comando),Jorge Alves(Eng.FA). Capitão miliciano J. Manuel Barroso (sobrinho de Mário Soares). A reunião moveu-se pela curiosidade em ser lido um documento (exposição/requerimento) que eu tinha feito à hierarquia militar ,com 40 folhas de papel selado, e que pelo seu teor de manifesto contestatário (e pelo facto de o ter distribuído em Aveiro, em 8 de Abril, pelos congressistas da Oposição Democrática, onde estive) tinha contribuído para levar o pontapé até Bissau.
Estávamos muito preocupados com a situação nacional e com o uso dos oficiais do Q.P. (Quadros Permanentes).Tínhamos a noção de que estes estariam a tomar consciência, missão após missão, do logro. Mas era lento e doloroso o processo. Combinámos criar um núcleo. Este que passarei a designar por “núcleo dinamizador” (A . Spínola uns anos mais tarde apelidou-o de “célula soviética” no seu Portugal sem Rumo) nunca mais se desintegrou e funcionou curiosamente até ao dia da liberdade. Constituiu nossa prioridade editar um documento a distribuir por todos os oficiais das FFAA, no sentido de os sensibilizar, para o que se estava a passar , nos mais diversos aspectos e sectores da vida do país. Distribuímos tarefas. Cada um encarregava-se de uma matéria especifica. Ficámos, de numa próxima reunião, reflectir sobre a forma de fazer chegar a informação aos Camaradas militares, Oficiais do Q.P., onde quer que se encontrassem, nas Colónias ou na Metrópole. “Como obter os endereços de todos?” era o desafio.
Não foi preciso.
Graças à publicação do celebérrimo Decreto-Lei nº. 353/73 que facultava a “entrada de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente através de curso intensivo na Academia Militar” os acontecimentos precipitam-se. A questão era saber aproveitar o facto. Assim nos propusemos como núcleo dinamizador e agora fortemente animados. Não podíamos perder a oportunidade.
A nossa segunda reunião foi toda ocupada pondo a criatividade ao serviço de uma estratégia que efectivamente colocámos em andamento e não mais pararia.
Ainda ninguém conhecia bem qual era o conteúdo do referido diploma. Constava que se aplicava às Armas operacionais de Infantaria, Artilharia e Cavalaria.
Só em meados de Agosto tomámos conhecimento do seu completo teor. Até aí, bastou-nos adivinhar qual o seu espírito para que recebêssemos aquele brinde de braços abertos.
Há que explorar com sucesso o” tremor de terra “ que tal diploma veio causar sobre os capitães. E assim foi. O núcleo entrou em acção.
Promoveram-se reuniões. Espalhou-se a palavra para os Capitães reunirem na Sala de Jogos do Clube Militar.
Confortou-se a “ convocatória “ com a adesão por solidariedade ( e não só) dos Capitães que mesmo não pertencendo às três Armas atingidas, deviam comparecer. Assim aconteceu a 17 de Agosto de 1973, sábado pelas 16.00.
No espaço de oito dias, efectuaram-se quatro reuniões. As três últimas, realizaram-se no Agrupamento de Transmissões.
· ( síntese das reuniões em anexo)
Resultou dessas reuniões a decisão de endereçar uma “carta-protesto” ao Presidente da República, Presidente do Conselho, Ministro da Defesa e Exército, Ministro da Educação e Secretário de Estado do Exército
Com a data de 28 de Agosto a referida carta teve as assinaturas de quarenta e cinco Capitães, recolhidas em Bissau e nas guarnições próximas (em 66 possíveis no todo do CTIG), às quais se juntaram ainda as de seis subalternos (em estágio) e foram enviadas, por correio registado, para os destinatários a cinco de Setembro.
O então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, pôs o seu serviço de secretariado em marcha para a tarefa de bater a carta à máquina em “ stencil “ e de comunicar aos Capitães em serviço no interior, o seu conteúdo e explicar-lhes a atitude de protesto colectivo, como afirmação frontal do nosso descontentamento.
Ficámos a aguardar a reacção.
O Almeida Coimbra iniciou então o contacto com Hugo dos Santos ( em Lisboa) de quem passamos a obter informação sobre os acontecimentos na Metrópole.
Na sua primeira informação ficamos a saber que toda a actuação prevista em Lisboa era fortemente tocada pela legalidade, pelo menos, aparentemente.
Esta (e todas as informações que iam chegando) foram lidas nas reuniões de Capitães que começaram a realizar-se periodicamente e numa das quais, ainda em Setembro, é eleita a primeira Comissão Coordenadora do Movimento de Capitães na Guiné,constituída pelos Maj. Almeida Coimbra, Cap. Duran Clemente, Cap. Matos Gomes e Cap. António Caetano ( que mais tarde seria substituído pelo Cap. Sousa Pinto).
O núcleo preparou a reunião. Matos Gomes que tinha vindo a Lisboa trouxera ,no regresso, alguns exemplares do recente livro de Sottomaior Cardia “Para uma Democracia Anticapitalista”. Divulgámos boa parte do seu conteúdo e acto funcionou como campanha eleitoral. Valeu-nos a eleição de dois de nós (M.Gomes e eu próprio) do referido “núcleo dinamizador” para a aludida comissão.
Entretanto soubemos da reunião de Évora, onde se encontraram mais de 130 oficiais do Q.P. Ficámos mais confortados.
Foi deliberado que se desse conhecimento ao Comandante Militar da existência das reuniões. Achou-se que era melhor que soubesse por nós próprios que nos reuníamos. Formalmente avançamos motivos profissionais como justificação. Ficou claro que só lhe era transmitido aquilo que se achasse conveniente. E assim aconteceu.
Na primeira reunião e única que tivemos com o então Comandante Militar Brigadeiro Alberto Banazol ( irmão do Ten. Cor. Luís Ataíde Banazol ) este saudou a atitude e deu-nos a devida autorização para reunirmos na Biblioteca do Quartel-General,instalada fora deste, no Batalhão de Intendência , em frente. Assim e sem querer autorizou-nos a conspirar...contra o sistema.
Mas foi peremptório ao reprovar expressamente a nossa manifestação colectiva. Referiu a nossa carta, enviada às mais altas hierarquias do Estado, censurando o gesto.
Para mostrar aparente solidariedade connosco, foi ao ponto de nos convidar para um jantar volante em sua casa. O que aconteceu com a comparência da esmagadora maioria dos Capitães, então disponíveis em Bissau.
Tal jantar teve um final conturbado pelas intervenções acaloradas de Otelo e Duran Clemente não só porque, à evidência de que as “altas esferas” estavam a deixar resvalar a Guiné, para um caso semelhante ao de Goa,Damão e Diu, o Comandante Militar Brigadeiro Banazol respondia com evasivas e não disfarçava aproveitar-se do gesto de anfitrião e de máximo superior hierárquico ( no Exército) para nos anestesiar e adormecer com a retórica habitual e com a fundamentação oficial do regime.
A partir daí , o Comandante Militar nunca mais teve informações da Comissão Coordenadora, mais por desinteresse seu do que nosso.Não consta que se preocupasse muito com “ os ventos fortes “ que corriam. Talvez não nos tenha levado a sério ou lá no fundo estivesse connosco, como até nos parecia .
Tanto assim é, que no próprio dia 25 de Abril, foi vitima de si próprio. Quando soube dos acontecimentos continuou “ abraçado ao seu lazer “ na ilha de Bubaque, não se apressando a retomar o seu posto em Bissau. Atrasou-se em fazer o que alguns fizeram com boa dose de hipocrisia. Outros, bem mais alérgicos à Revolução, acabaram por apanhar o comboio com todo o vapor que o oportunismo ( e nós ) lhes permitimos. O Brigadeiro Alberto Banazol não quis mostrar que estava do nosso lado e do lado do seu irmão Ten.Coronel Luís Banazol.
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Aliás curiosamente foi aquele (irmão) que me apresentou este, no último sábado de Dezembro de 1973,a caminho da piscina do Clube Militar. Não me esqueço das palavras então trocadas: “Você é que é o Clemente ? Há cá mais algum ? ”Esta era a senha trazida de Lisboa. A minha resposta foi : “capitão só eu “. ”Então é você. Trago indicações de Lisboa para lhe falar !!!” Reagindo ao meu esgar descansou-me: “...não se preocupe, aqui o meu irmão Brigadeiro é um democrata”.
***
As cartas seguiram também para Lisboa, numa segunda via, levadas pelo Cap. Ayala Botto (ajudante de campo do Gen.Spínola) para as fazer chegar aos destinatários caso os originais se perdessem.
Convirá recordar que a 6 de Agosto de 1973 o Gen.Spinola regressara a Lisboa. Fim de missão, inicio de outros voos. O seu lugar de Governador e de Comando Chefe só seria preenchido em Outubro pelo General Betencourt Rodrigues.
***
Através dos camaradas que gozavam férias na metrópole, ou dos que a esta voltavam por fim de missão (ou pelos que entretanto chegavam em início) ou ainda através de correspondência, já com linguagem um tanto codificada, as informações iam-se cruzando entre Bissau e Lisboa. O Hugo dos Santos passou a ser o “ Pedro “ e outros heterónimos deram à luz, por precaução, mais tarde justificada.
A conspiração desenvolveu-se no sentido prioritário e fulcral de angariar o maior número possível de “ adeptos para a causa “ e para a libertação.
Aguardavam-se instruções da “coordenadora” de Lisboa.
O trabalho de sensibilização e de informação foi sendo feito com método e sistema. Os resultados iam sendo, a pouco e pouco, muito gratificantes, na medida em que paulatinamente se foi conquistando para o nosso lado a maioria de Oficiais colocados em posições ( de comando ) estratégicas e essenciais para o que “desse e viesse”.
A Marinha aderiu em força. Com a sua tradicional organização ( meticulosa e serena ) dispôs as suas pedras com todo o cuidado e aceitou o repto. Destacaram Oficiais que passaram periodicamente a reunir-se connosco, para troca de informações e análise da situação. Inicialmente os 1ºs Tenentes Marques Pinto e Pessoa Brandão e mais tarde Manuel Serrano e Rosado Pinto.
A Força Aérea destacou desde sempre os capitães Jorge Alves e Faria Paulino e depois Sobral Bastos e Albano Pinela (Paraquedista).
Em Outubro tive oportunidade de efectuar uma reunião com quatorze oficiais pilotos-aviadores do Q.P., acompanhado de Faria Paulino.
Lá estava também o meu companheiro de viagem Lisboa/Bissau.O trauma da bola de fogo do companheiro perdido estaria a transformar-se iluminando as consciências.
Como é sabido as iniciativas da Força Aérea estavam praticamente paralisadas depois de nos primeiros meses de 1973, seis aviões entre Fiat, T-G e DO 27, terem sido abatidos, após a introdução de mísseis terra-ar ( os Strela), na equipagem do PAIGC.
Nesta reunião com os Pilotos-Aviadores, ficámos com a sensação de que quase todos, se não mesmo todos, tinham aderido ao Movimento,ou pelo menos, não lhe eram hostis.
No Exército contavamos com mais aderentes à medida que íamos, progressivamente, com maior segurança, alargando a malha de contactos e de informações e consolidando as estruturas organizativas por cada unidade operacional.
Paralelamente um movimento de Oficiais milicianos, foi-nos acompanhando e ia-se consolidando, tendo como principais mentores os Alferes Milicianos Barros Moura, Celso Cruzeiro e o já referido capitão Miliciano José M. Barroso ( reflectindo efectiva e curiosamente três tendências diferentes ).
Os ânimos confortaram-se ainda mais à medida que da Metrópole iam chegando as notícias da evolução do processo.
A partir de Dezembro começa-se a ver mais claro qual o sentido do Movimento, após as reuniões que na Metrópole apontavam para a mais que provável decisão de “pegar em armas” para derrubar a situação.
Também na Guiné foram conhecidas as três hipóteses, colocadas para reflexão (decisão) aos Capitães na reunião de Óbidos em 24 de Nov.73, que eu próprio trouxera após a minha deslocação a Portugal em Nov..
a. -Conquista do poder para com uma Junta Militar criar no país as condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional;
b. -Dar oportunidade ao governo de se legitimar perante a Nação através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, precedidas de um referendo sobre a política ultramarina;
c.-Utilizar reivindicações exclusivamente militares como forma de alcançar o prestigio do Exército e de pressão sobre o Governo.
Também soubemos a seu tempo do resultado do escrutínio.
Nele nos concentrámos para o correspondente apoio como retaguarda e reforço.
A decisão de que na Guiné também optaríamos pela tomada de poder pelas armas já estava tomada há muito; daríamos no entanto a possibilidade à hierarquia militar no Comando Territorial Independente da Guiné /CTIG para se pronunciar. Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa. No caso de insucesso das operações do Movimento em Portugal a nossa estratégia era a tomada de poder na mesma. Teríamos esse trunfo para jogar na defesa das nossas convicções. Por outras palavras, constituir-nos-iamos numa grande pedra no sapato e dor de cabeça para o Governo Português, com uma Colónia sublevada. Para isso, tínhamos de ter o completo domínio do comando em todos os Sectores e Ramos das n/ FFAA, instaladas no teatro de operações da Guiné. Iríamos ter.
No final do ano de 1973 só nos faltava o Regimento de Paraquedistas que virá a aderir em Fevereiro de 74, após o conhecimento do conteúdo do livro “Portugal e o Futuro” do Gen. Spínola.
O Comandante do Batalhão de Paraquedistas, Major Mensurado, manda formar o Regimento. Faz uma palestra. Adverte os seus homens da eventual necessidade de terem de cometer uma acção e indisciplina a “Bem da Nação”. Quem não estiver de acordo deve dar um passo em frente.
Ninguém deu.
Mesmo assim, veio a Lisboa, com um nosso delegado do Movimento, perguntar pessoalmente ao General Spínola se “avalizava” o seu procedimento.
Regressou aliviado e mais feliz.
E nós também, porque era uma unidade indispensável.
Antes, porém, tivemos de “travar” a ansiedade do Ten. Coronel Luís Ataíde Banazol ( que aqui e hoje sempre prestarei homenagem pela sua atitude na reunião de Cascais em 24 de Nov. 73 e de Óbidos, em Dez. ) que ao chegar à Guiné com o seu Batalhão – que estacionou uns dias no Cumeré – antes de chegar ao seu destino: Bambadinca, queria tornar o poder ocupando o Palácio do Governo da Colónia.
Após aturadas reuniões connosco “ os jovens e pálidos Capitães da Guiné “, como ele se refere num dos seus livros, conseguimos dissuadi-lo. Prometi-lhe que seria dos primeiros a saber quando ganhássemos.
* * *
E soube. No dia 25 de Abril, pelas nove horas – o meu subalterno comandante de Destacamento de Intendência (Alferes Mota), sediado em Bambadinca( com quem tinha ligação telefónica directa) foi dos primeiros a quem dei a noticia para a retransmitir ao Ten.Cor.Luis Banazol : HOUVE REVOLUÇÃO: ganhámos.
* * *
Voltando aos primeiros meses do ano é de assinalar o seguinte e de forma resumida:estreitaram-se os contactos com Lisboa.Em Fevereiro estive com V. Lourenço na Trafaria, após ter vindo a Lisboa para receber informações mais actualizadas. Tive oportunidade de referir que o pessoal na Guiné estava com acentuado nervosismo. Vasco Lourenço apelou à serenidade e afiançou que a “acção” se daria antes do 10 de Junho.Foi esse o recado que trouxe então.
Em 4 de Março avisamos Lisboa ( Hugo dos Santos) de que os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monje regressavam à Metrópole no dia seguinte e estavam cheios de entusiasmo. Denotavam extrema vontade de intervir. Haveria que dar o melhor enquadramento à sua dinâmica.
Em finais de Dezembro anterior estes oficiais, com mais cinco oficiais superiores, manifestam também adesão ao Movimento. Assinaram na minha presença uma carta enviada ao General Spinola confortando a sua decisão colocando-se ao seu dispor na mudança.
Marcelo Caetano continuava nas suas conversas em família a tentar convencer-nos de que se podia fazer turismo nas nossas “provincias ultramarinas”.
O semanário “Expresso” publica excertos duma dessas conversas em família lado a lado com retalhos do livro “Portugal e o Futuro” do Gen.Spínola.
No principio de Abril uma Delegação de Bissau esteve com o Movimento em Lisboa e recebeu as últimas informações.
Na noite de 24 para 25 de Abril aguardámos no Centro de Comunicações do Quartel General de Bissau o contacto telefónico programado. Não chegou. Uma das poucas acções de retaliação da dita “Legião Portuguesa” foi o corte do cabo telefónico que servia a Guiné.No meio da nossa ansiedade lá fomos sabendo do que se passava através das agências noticiosas .Pouco a pouco as teleimpressoras foram ditando os acontecimentos e noticiando a Alvorada de Abril. Exultamos. Pelas oito horas da manhã foram restabelecidos os contactos telefónicos.
Propriamente no dia 25 de Abril quer o Comando Chefe quer o Comando Militar, não tomaram posição de adesão ao Movimento. Com as unidades em alerta, prontas a avançar, tais como: Batalhão de Comandos, Batalhão de Paraquedistas, Batalhão de Intendência, Grupo de Artilharia e o Agrupamento de Transmissões e de Engenharia e outras, avançou a Companhia de Polícia Militar, que tomou pacificamente as instalações do Comando Chefe. Uma delegação do MFA interpelou o Comando Chefe Gen. Betencourt Rodrigues, que entretanto reunira todos os seus oficiais e aos quais se dirigiu “ vencido mas não convencido “. Ficou à nossa disposição e com outros oficiais que foram seleccionados como não tendo aderido ao nosso espírito, foram “ convidados “ a seguir uns dias depois em avião para Lisboa.
O MFA colocou o Almirante Almeida Brandão como Comandante Chefe ( Interino ) e o Major Eng.Tm Mateus da Silva, como representante da J.S. Nacional, até 7 de Maio, quando chegou o T.C. Carlos Fabião.Este graduado em Brigadeiro passou a ocupar o topo da hierarquia militar e governativa na ainda Colónia.
Tinha acabado a conspiração: outros desafios nos foram lançados.
Nunca nos passou pela cabeça que no curto espaço de seis meses as NT(nossas tropas) deixassem definitivamente a Guiné, como aconteceria a 15 de Outubro de 1974.
*** *** ***
3ª parte –A descolonização na Guiné-Bissau.
(do 25 de Abril a 15 de Outubro -1974)
Manuel Duran Clemente
Intervenção “Nos 30 anos do 25 de Abril” no painel “Conspiração” com os Coroneis Vasco Lourenço e Aprigio Gonçalves /
Oeiras, 25 de Marçode 2004
Anexo/ Síntese das reuniões de Bissau
1ª Reunião
Efectuada em 17/8/73,sábado pelas 16h00, no Clube Militar de Oficiais com 23 capitães
1. Foi lido o Decreto-Lei nº 353/73 e as alterações que motivaram nova redacção dos artigos 3º e 6º .
2. Constatou-se que com a nova redacção, relativamente aos capitães do Quadro Permanente das armas de Infantaria, Cavalaria e Artilharia, a sua ordem na escala de antiguidade era alterada com a introdução de Oficiais do Quadro Complemento.
3. Constatou-se ainda ,por outro lado, que um curso superior(Academia Militar)de quatro anos era substituído por um curso de dois semestres. Esta atitude do Governo foi considerada como mais uma das que por sistema vinham desprestigiando os quadros permanentes das FFAA.
4. Decidiu-se que fosse escrita uma carta protesto ao Presidente da República, ao Presidente do Conselho, ao Ministro da Defesa e Exército, ao Ministro da Educação Nacional e ao Secretário de Estado do Exército.
A inclusão do Ministro da Educação, nos destinatários, justificava-se pelo facto já referido: curso superior igual a curso intensivo, tipo “curso por correspondência” como alguém referiu.
5. Foi aceite que uma comissão de oficiais apresentasse até às 14h00 do dia seguinte uma minuta da carta. Ofereceram-se para escrever essa minuta o recentemente promovido a Major Almeida Coimbra e os Capitães Branco, Duran Clemente e Matos Gomes.
6. Os oficiais presentes que não eram das armas afectadas manifestaram a razão da sua presença. ”Estavam ali por solidariedade e porque achavam que o cerne da questão não era apenas de natureza corporativa. Se de facto o Decreto-Lei representava uma machadada no prestigio dos oficiais oriundos da Academia pior ainda era a cegueira política de quem governando o país “orgulhosamente sós” não dava as soluções aos problemas quer na Metrópole quer no Ultramar”. Até quando estaríamos dispostos a ser enganados.
7. Foi considerado urgente o envio da carta cujo conteúdo deveria ser ,apesar de tudo, subtil.
8. Alguns mais legalistas e receosos apelaram para que se criasse um grupo de advogados por forma a garantir-se cobertura jurídica das atitudes de indisciplina que forçosamente ,face ao RDM, se iriam tomar.
9. Foi ainda aventada a hipótese de se estender a contestação aos oficiais superiores que o desejassem fazer. Concluiu-se pela negativa pelo facto e se constatar que, após as alterações no Decreto, os majores e tenentes-coronéis se teriam afastado e desinteressado do protesto.
2ª Reunião
Efectuada em 24/8/73,sábado pelas 14H00 no Agrupamento de Transmissões
1. Foi lida por um membro da mesa o projecto da carta.
2. Após algumas rectificações o conteúdo da carta foi considerado pouco acutilante e muito suave. Alguns chamaram-lhe “carta de amor”. Venceu contudo o consenso. Considerou-se que o mais importante era o efeito que iria ter a manifestação colectiva.
3. Efectivamente sendo vedada a manifestação, para além do que era permitido a cada um, teve-se consciência do efeito que iria ter um documento assinado por mais de meia centena de capitães em guerra.
3ª Reunião
Efectuada no mesmo dia, sábado pelas 18H30 no mesmo Agrupamento
1. Foi discutida a questão do risco da atitude da “carta colectiva” quer pelos directamente atingidos pela legislação em causa quer pelos outros que se haviam solidarizado.
2. Voltou-se a colocar a questão do apoio jurídico.
4. Acertaram-se aspectos práticos e administrativos. O Capitão Otelo Saraiva de Carvalho ofereceu os seus serviços de secretariado para “escrever e imprimir” a “stencil” a carta. Tínhamos de obter cinco exemplares iguais e assinados.
5. Por outro lado ter-se-iam que utilizar os meios mais expeditos para obter o maior numero possível de assinaturas dos capitães. Fizeram-se conjecturas para a angariação de assinaturas no mato.
6. Ficou assente que outras atitudes se teriam que tomar a partir de então: relativamente a possíveis reacções por parte dos destinatários e relativamente ao futuro .
7. Decidiu-se dar conhecimento do envio da carta ao Comandante Militar.
8. Por alguns foi novamente colocada a questão da carta não ser objectiva na reivindicação. Um dos oficiais presentes declarou não assinar.
9. Outro dos presentes declarou não assinar por não acreditar nos resultados da atitude.
10. Voltou-se à questão da participação dos oficiais superiores. Decidiu-se que a seu tempo poderiam ser úteis se quisessem sê-lo.
11. No fim da reunião sobressaiu a intervenção de um capitão que avisou para a hipótese ou eventualidade de terem as FFAA necessidade de pegar em armas e actuarem em conformidade com o mal estar existente não só na sociedade militar como na civil. Claro que houve numa certa minoria alguma apreensão face a tal cenário. (A intervenção foi do capitão Jorge Golias).
4ª Reunião
Efectuada no dia 28/8/73,quarta-feira pelas 21H00 no Agrupamento de Transmissões
1. Foram obtidas as assinaturas da maior parte dos capitães e ainda de seis subalternos em estágio.
2. Foi decidido que se iriam realizar reuniões periódicas e eleger uma comissão que coordenasse as iniciativas em função do que se fosse deliberando.
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