domingo, 29 de agosto de 2021

Entrevista ao JFundão 28.08.2021

 

Nasceu em que ano? Quantos anos tinha aquando do 25 de Abril?

 

Nasci em 28 de Junho de 1942,em Almada, na quinta duma tia que criou a minha mãe, ambas da Galiza. O meu pai António dos Santos Clemente, nascido em 1915 na Capinha/Fundão, chegou a Capitão  ,progredindo numa carreira militar de excelência.

 

No 25 de Abril de 1974 eu tinha 32 anos e dois filhos.

 

Que ligações tem à Beira Interior?

 

Como já referi o meu pai nasceu na Capinha,filho de pais ligados ao campo/agricultura e era o único homem irmão de quatro filhas dos meus avós.Três, dessas minhas tias,sempre viveram na Capinha,Peroviseu e Fundão.Outra em Lisboa.

                                                                                            

Que memórias tem aqui na Beira da sua infância?

  Vivi desde os dois anos e até aos onze na vila de Penamacor, onde o meu pai prestou serviço militar e onde viveu quinze anos. Com a família perto eram frequentes os contactos ,com avó, tias e primos, com muitas idas, sobretudo, ao Fundão,Capinha,Covilhã e Castelo Branco.

 Frequentei a Escola Primária desde 1948 a 1952,passei com distinção a quarta classe e o exame de admissão ao Liceu de Castelo Branco e ainda o mesmo ao colégio interno dos Pupilos do Exército, onde entraria em 1953,após um ano de espera. As férias de Natal e Páscoa e parte das férias de Verão passei-as sempre com os meus pais, em Penamacor e Águeda(2 anos) até 1960.Ano em que meus pais se deslocaram   para S.Tomé e Principe, comissão de serviço de meu pai, já então Alferes, e onde estive com eles nas férias de Verão de 1960,meses antes de ingressar na Academia Militar.

Relativamente à minha infância e juventude na Beira Interior tenho as mais vivas e belas recordações, não só dos passeios pelas suas belas terras,das suas tradições festivas do Natal e Páscoa, como dos Santos Populares e ainda das romarias da Senhora da Póvoa/Penamacor, Senhora do Incenso/Penamacor  e de Santa Luzia/Fundão. Numa iniciativa do Jornal do Fundão recordo que em 1961,com um conjunto de 20 jovens estudantes(rapazes e raparigas), trajados a preceito, embelezámos dois carros de bois, com palmeiras e flores, para a romaria de Santa Luzia e recebemos o primeiro prémio, como constará nos arquivos do J.F..

  Esteve envolvido nos preparativos da Revolução do 25 de Abril? Como viveu o dia? Qual a sua missão? Teve receio que o golpe falhasse?

 

Falarei por mim,certo de que todos os “militares de Abril” tiveram o seu percurso.Comecei muito cedo e, já na Academia Militar, a maioridade da minha formação politica vinda de contactos anteriores com um grupo de amigos de estudantes liceais e universitários. Fui o primeiro classificado dos meus cursos, quer nos Pupilos do Exército, quer na Academia Militar. Já na Academia Militar me tinha manifestado contra o regime e foi o meu bom “curriculum” escolar anterior que terá evitado a expulsão. Após regresso  da minha primeira comissão em Moçambique (1969 e 1970) iniciei contactos, entre os quais com militares do meu tempo, e tive das primeiras reuniões com capitães de Engenharia onde estava colocado (Direcção da Arma de Engenharia) com vista a alterar a situação política. Estive no 3º Congresso da Oposição Democrática, com mais alguns militares (todos nós clandestinos). As entidades militares tiveram conhecimento dessa minha participação e bem assim dum documento que lhes apresentei como censura da guerra e da situação opressora no país. Tal facto levou a que fosse antecipada a minha ida para mais uma comissão em Julho de 1973 e para a Guiné –Bissau. A realidade é que,em Bissau,onde viria a ser segundo comandante do Batalhão de Intendência da Guiné, me juntei a alguns capitães que já tinham a ideia de sensibilizar camaradas seus ,sobretudo capitães, para que se actuasse. A ideia lançada de que a “revolta dos capitães” começou na Guiné não merece discussão. Têm tanta razão os que a defendem como os outros. A revolta começou em cada um de nós, o espaço não foi temporal nem fisicamente circunscrito a uma qualquer latitude, mas  de facto a Guiné marcou muito os militares e era ressonante o seu efeito como um vulcão de conflitos e desafios.

Efectivamente na Guiné viviam-se tempos favoráveis à  reflexão e ao debate. De forma mais aberta ou mais  reservada a contestação convivia com a humidade e o calor tropicais. As  circunstâncias fizeram o resto; tornaram a colónia da Guiné um laboratório de experiências e de vivências  particulares. Muito pelo seu clima, muito pelo seu tamanho, muito pelo abandono do colonizador e bastante pela forma de actuação do PAIGC e do seu líder Amílcar Cabral, cujo pensamento nos apaixonou e guiou a partir de certa altura
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Graças à publicação do celebérrimo Decreto-Lei nº. 353/73 que facultava a “entrada de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente (nas três armas Infantaria, Artilharia e Cavalaria) através de curso intensivo na Academia Militar os acontecimentos precipitam-se. A questão era saber aproveitar o facto. Assim o fez o grupo dinamizador que eu integrei com os capitães Otelo Saraiva de Carvalho, Jorge Golias, Carlos Matos Gomes, Sousa Pinto, Jorge Alves e José Barroso (este miliciano).Decidiu-se por escrever uma “exposição-protesto” ao Presidente da República, Presidente do Conselho, Ministro da Defesa e Exército, Ministro da Educação e   Secretário de Estado do Exército.

Estava pois criado o ambiente e lavrado o terreno para o que viria a seguir.

O grupo de trabalho, encarregado de escrever o texto da mesma, foi constituído pelo recém-promovido Major Almeida Coimbra, Capitães Teixeira Branco, Duran Clemente e Matos Gomes. Assim se iria, com uma assinatura colectiva, afrontar os regulamentos.

Havia que explorar com sucesso o” tremor de terra “ que tal diploma causou no seio dos capitães. E assim foi. O núcleo entrou em acção. Promoveram-se reuniões. Espalhou-se a palavra para os Capitães reunirem no Clube Militar. Com a data de 28 de Agosto a referida  “Exposição”  teve as  assinaturas de quarenta e seis Capitães, recolhidas em Bissau e nas guarnições próximas (em 66 capitães possíveis em todo o território), às quais se juntaram ainda as de  quatro Tenentes (em estágio). De notar que os oficiais subscritores eram de todas as armas e serviços. O documento e cópias foram enviados, por mão própria,  (capitão Ayala Botto), reforçando o envio por correio registado, para os destinatários. Igualmente nos encarregámos  de comunicar aos Capitães, em serviço no interior, o seu conteúdo e explicar-lhes a atitude do protesto  colectivo, como afirmação frontal do nosso descontentamento.

A este propósito no seu livro “Alvorada em Abril” é com oportunidade que Otelo escreve: “ Esta autêntica manifestação colectiva poderia ter constituído um sério sinal de alerta para o Regime “ e dizendo ainda “ os jovens leões rugiram, mansos, a princípio. Ganhando consciência da sua força, foram deitando as garras de fora e, rugindo mais forte, lançaram-se ao ataque. A partir daí, quem poderia realmente travar o seu desenfreado galope?”.

Em Setembro, é eleita a primeira  Comissão  do Movimento de Capitães , na Guiné (e que daria o nome ao Movimento), constituída por Duran Clemente,  Matos Gomes  ,Almeida Coimbra e António Caetano ( que mais tarde seria substituído por Sousa Pinto, o quinto mais votado).

Certamente impulsionados por nós, reuniram-se em Portugal, em 9 de Setembro, num monte alentejano em Alcáçovas/Èvora,136 oficiais do Exé  rcito (95 capitães,39 tenentes e 2 alferes)e dali saiu outra “exposição-protesto” com as assinaturas de todos estes militares e dirigida ao Presidente do Conselho.

 Na Guinè houve que alargar o movimento aos capitães da Armada e da Força Aérea missão de que se encarregou a Comissão do Exército de que eu fazia parte. Passaram a integrar a Comissão os Primeiros Tenentes Marques Pinto e Pessoa Brandão e os Capitães Faria Paulino e Jorge Alves.

 Nos  primeiros meses de 1974 é de assinalar o seguinte e de forma resumida: estreitaram-se os contactos com Lisboa. Em Fevereiro Duran Clemente, vem a Lisboa para contacto com Vasco Lourenço em serviço numa unidade na Trafaria (Bat.Art).Nesse encontro foram actualizados os conhecimentos das situações. Mas da Guiné vinha um aviso firme dos seus capitães “…ou as coisas se resolvem em Portugal e depressa ou nós, capitães na Guiné, que temos tudo preparado para tomar conta da colónia, o faremosEstamos mais que impacientes…não vamos depor as armas. Há vidas a defender. Mas tomaremos o poder e negociaremos…com quem for preciso”. Era sabido que o pessoal na Guiné estava com acentuado nervosismo, embora consciente mas impaciente, e isso tinha sido claramente dito por Salgueiro Maia que, em Outubro antes, regressara a Lisboa e fora colocado em Santarém. Vasco Lourenço apelou para que tivéssemos serenidade e afiançou que a “acção” se daria antes do 10 de Junho. Foi esse o recado do Movimento de Capitães no continente que o mensageiro trouxe para o Movimento na Guiné.

Em 4 de Março avisamos Lisboa de que os Majores Casanova Ferreira e Manuel Monge regressavam à metrópole no dia seguinte e estavam cheios de algum voluntarismo. Denotavam extrema vontade de intervir. Haveria que dar o melhor enquadramento à sua dinâmica. Ouve distração do nosso aviso ( já com Vasco Lourenço nos Açores) e ocorreu o 16 de Março.

Fomos recolhendo informações e sensibilizando os novos oficiais capitães que foram chegando e até outras patentes de oficiais dos três ramos. Entretanto em todas as unidades (quarteis) fomos nomeando representantes dos capitães, dos sargentos e dos praças, como nossos delegados. Em caso de necessidade  todo o CITGuiné estava nas nossas mãos.Quem não estivesse connosco seria devolvido a Lisboa como aconteceu com o General Comando –Chefe e outros por nós interpelados, no dia 26.

 Qualquer eventual golpe nosso, na Guiné, não falharia se o golpe no continente falhasse. Mas é verdade que sempre acreditamos no sucesso dos camaradas em Portugal com a aprendizagem do falhado e precipitado: 16 de Março.

                                                                                     

Quais as principais memórias desse dia?

 Nós, membros da Comissão, soubemos dois dias antes que a acçâo em Portugal seria na madrugada do dia 25 de Abril. Nessa madrugada aguardámos (Major Monção Fernandes, chefe do CHERET, Duran Clemente e Faria Paulino) no Centro de Comunicações do Q. G, de Bissau. O contacto telefónico programado com Lisboa,não chegou. Uma das poucas acções de retaliação da dita “Legião Portuguesa” foi o corte do cabo telefónico -na Rua de S.Marçal -  que servia a Guiné. No meio da nossa ansiedade fomos sabendo do que se passava através das agências noticiosas, France Press, Reuter e outras. Pouco a pouco as  tele-impressoras foram ditando os acontecimentos e noticiando a “Alvorada de Abril” em “inglês”, ”francês” e “português”. Exultámos. Pelas oito horas da manhã foram restabelecidos os contactos com Lisboa. Imediatamente comunicámos a toda a nossa Coordenação o sucesso.

Aos nossos homens do Movimento colocados em todas as guarnições da Guiné, e que estavam há dias alertados, foram dadas pela Coordenação de Bissau a indicação de transmitirem aos comandantes que ou aceitavam a nova “ordem nacional” ou eram imediatamente substituídos. O poder na colónia era já, e a partir daqui, do MFA da Guiné. Os contrariados, não aderentes “marcharam” para Bissau. Embarcariam para Lisboa de avião, dias depois.

De Bissau partimos aos quatro cantos da colónia para explicar aos militares o ponto de situação e consolidarmos a manutenção da disciplina e das novas hierarquias tendo por base as delegações do MFA.Fui numa dessas missões.

 Que avaliação faz do percurso da democracia nestes quase 50 anos?

 Uma avaliação positiva. Para começar, sobretudo nos cinco primeiros governos provisórios, foram aprovados cerca de duzentos Decretos-lei que consubstanciavam as grandes conquistas prometidas no nosso Programa Politico do MFA. Democratizar, Descolonizar e Desenvolver foram os grandes objectivos  plasmados na Constituição da Republica em 2 de Abri de 1976.

O Portugal de hoje nada tem a ver com o Portugal do antes do 25 de Abril, mesmo tendo em conta que muito falta fazer ,não esquecendo as bases fraquíssimas de democracia e de desenvolvimento herdadas da ditadura. Com elas o obscurantismo e a manipulação do conhecimento continuaram a atormentar-nos. Infelizmente a forte tendência mercantilista, que foi apanágio da nossa colonização, pouco nos deu em certos sectores e principalmente na indústria. Há no entanto excelentes esforços feitos nos últimos quase 50 anos. As taxas de analfabetismo eram de cerca de 40% e passaram para valores de cerca de 3%,a taxa de mortalidade infantil passou de 38 por mil para cerca de 3 por mil. Institucionalizou-se o Serviço Nacional de Saúde e da Educação Democrática. Lares sem luz passaram de 36% para 0,3%.Lares sem água e saneamento básico de 53% para 1,5%.Eleições livres. Salário mínimo e pensão social. Direito à greve. Subsidio de férias e de Natal, este também para os reformados. Devolução dos baldios. Direito ao divórcio nos casamentos católicos. Direitos, liberdades e garantias e tantas outras melhorias no espaço cultural,material e de infraestruturas.

Há cerca de um mês visitei Castelo Branco,Belgais, Penamacor,Lardosa, Unhais da Serra,São Miguel dÁcha,Fundão,Belmonte,Sortelha e Sertã fiquei maravilhado com os seus progressos.

  Como vê o crescimento de alguns extremismos no mundo da política atual?

 Vejo com muita inquietação este crescimento dos extremismos. Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional, que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os mais desfavorecidos e descontentes. Saber mais e melhor é preciso para distinguir oportunismos assaz perigosos..

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Entrevista com Coronel Manuel Duran Clemente,Capitão de Abril e agraciado elo P.R. com a Ordem da Liberdade,grau Grande Oficial, no passado dia 19 ,com mais 25 militares empenhados na conspiração e acção para o 25 de Abril de 1974.

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