Partilhado de Rita Blanco Clemente.
As gaivotas deixam-nos suas grandes penas no areal da Costa da Caparica
Penas por estarmos na praia e não a lutar pelo Ser Vivo cada vez mais consumido. Por quanto mais tempo fugiremos para a Costa e para esses locais menos humanizados onde descanse o nosso silêncio e com ele ganhe espaço a natureza? Penas por nossos erros. Penas por justiça. Penas que reescrevem a verticalidade levantada de sua queda. Penas que um dia permitiram às aves voar e planar certamente sem demasiado pesado penar.
Sem condições monetárias para ir mais longe e por mais tempo aproveitamos um pouco de dinheiro que ainda tenhamos e uma folga às nossas preocupações e também pela nossa saúde corremos à Costa. A Costa permanece aquele local despretensioso onde a diversidade da classe média da área metropolitana de Lisboa ainda tem lugar para se encontrar. Ainda há os pescadores ao fim do dia entre um mar vivo bem particular e uma encosta trabalhada pelo tempo a guardar uma vegetação de savana por entre esta enorme estrada de areia onde um pequeno comboio pode aparecer escancarado ao vento a dizer-nos que a liberdade é possível.
A praia traz-nos a cada novo verão as suas surpresas e neste ano de 2011 podemos observar aqui e ali na Costa da Caparica grandes penas deixadas por gaivotas, este ano aqui, bem ao lado das toalhas onde estendemos o nosso descanso, onde sentimos o peso do nosso corpo, a imensidão do céu o calor reconfortante do sol que tanto nos abraça sem nada pedir ou exigir em troca. Aqui estamos no mar, no sol, no céu e na areia e cada um desses elementos está em nós tão naturalmente quanto nos sentimos uma parte integrante disso que vive. Que nos dirão estas penas tão pouco dadas a poderem passar despercebidas? São grandes, são penas que mais parecem plumas de aparo e são das tão altivas gaivotas, a planar como ninguém e sempre à espreita daquilo que homens por Lisboa fazem. Espreitam muito, de facto, e se repararmos apresentam, contrariamente aos animais mais afectivos e pitorescos, um ar sério, muito pouco certo daquilo que por cá se faz. Espreitam e de novo se vão embora. Voltarão elas sempre? Virão elas dizer-nos onde encontraremos peixe quando percebermos que este morre e não é repetível que nem gémeos ad infinitum?
A praia esse imenso infinito onde nos dias mais invernosos apenas encontramos as gaivotas com a sua presença muito leve mas cada vez mais alerta. Aí, onde o nada parece habitar, passa numa quietante e séria liberdade o branco muito branco destas aves que certeiramente escolhem o seu alimento entre a pureza do céu e a pureza do mar num gesto integrado que parece tão mais alcançado e além do humano que insiste em procurar dominar aquilo que lhe escapa e com o qual jamais poderá estabelecer uma relação de domínio porque esta restringe, limita, prende e fixa e a vida é precisamente o enorme, o livre e o movimento. Tal como a gaivota que encontra o seu peixe fresco, imbuído de iodo, e o faz num gesto muito certeiro e vertical, tal como um bailarino que não procura o equilíbrio mas nele entra num simples instante, também a nossa relação com este cosmos que nos envolve me parece também dever ser um pouco mais deste género: um entrar numa espécie de fio vertical que se cria e de repente sermos, para além de nós próprios, muito leves, mas certos. Tudo é muito mais complexo que uma relação onde apenas há força a dominar, manipular, perverter, usar, prender, reduzir, uniformizar, matar. Quando a força se ausenta somos maiores, diversos, completos, livres e justos.
No verão as gaivotas afastam-se da multidão que parece impedi-las de ser, um pouco incomodadas só aparecem por vezes lá para o final do dia. Então, e porque nos deixam elas este ano suas enormes penas no areal? Por um qualquer problema de saúde que as leve a perder mais penas, talvez por encontrarem menos peixe ou tão somente por o vento as trazer este ano para mais perto de nós, o que é certo é que lá estão e que a mim logo me fazem lembrar plumas de aparo: bastará cortar-lhes a ponta e por serem ocas absorverão tinta com que poderão desenhar, escrever, registar, abrir caminhos de algum céu pelo areal. Muito batidas pelo mar as margens inicialmente rochosas vão nesse vai e vem da água se transformando em areia. Nesta areia subtil, que o vento vai levando para aqui e ali, poderemos escrever, marcar o nosso espírito e deixar que de novo o mar e o vento levem nossas letras ser, pela luz, pequeninas estrelas que quem sabe um dia se juntarão às estrelas que do céu nos alimentam. Que letras escreveremos nós nesta areia, local de passagem entre a rocha e o mar, entre o ir e o ficar?
Neste momento difícil em que mal nos sentimos respirar, a alta velocidade e sem janelas, persistindo no domínio do humano e de sua natureza em vez de abrirmos o caminho de sua criação, verdade e justiça. Neste momento poderemos também ao olhar para estas penas perguntarmo-nos pelo que penamos nós afinal? Que erros teremos cometido para termos estes castigos? Impulsionámos, contribuímos, pactuámos ou sujeitamo-nos a este mundo contra-natura? Estamos contra a natura ou dela nascemos e por e com ela lutamos e trabalhamos? Penamos? E pelo quê? Esquecemos o espírito, o ar e a liberdade e quisemos ser apenas matéria, segurança e prisão. Não quisemos estar sós. Perdemos nossa interioridade, nossa contemplação e nosso perscrutar, nossa lentidão e enamorar, o nosso estar alerta e nossas dúvidas. Tantas são as horas e tão eternamente lento é o movimento do universo. Que ridículo é o humano com tanta pressa sob o olhar eterno das estrelas.
Por favor! Agora que o consumo se torna mesmo impossível, agora que os objectos mais do que nunca se desfazem de tanta inconsistência, agora que as administrações se sucedem umas atrás das outras impunes à responsabilidade de seus operários e que fortunas se condensam e divertem povos inteiros com os mais variados desportos afins, agora que a alimentação, a saúde, a educação e a criação são confundidas com experiências de laboratório onde o humano em nada se implica mas permanece friamente à distância desmembrando e esvaziando a vida de seu suco. Não chegou finalmente o tempo de pensarmos que tudo aquilo que é feito de um modo no momento em que é feito não pode mais ser feito de esse modo que de outro e que somos finalmente também nós responsáveis de nossas penas. E nós que fazemos? Pelo que lutamos? Que valem nossas vidas? Pelo que nascemos? Pelo que poderemos antes sofrer as penas de uma pena que procurando cair certa do céu vai ao fundo do real para endireitar tanta afronta. Que as nossas penas sejam outras! Não as de nos sujeitarmos, mas de lutarmos. Se nos sujeitamos ficamos sem perceber porque nascemos. Se lutamos fazemos por aquilo em que acreditamos, recuperamos sentido, justiça.
Face às penas do sofrimento podemos ver então nestas penas, não a prisão de estarmos imóveis, dependentes de tudo e sem nada disso de que nos tornamos dependentes, mas antes a memória do voo e da liberdade alimentada por momentos a pique em que uma pena é justiça porque não se deixa enredar por retrocessos à verdade mas a alcança de uma ponta à outra fazendo intervir mais do que um raciocínio dedutivo perante a multiplicidade de letras que nos constituem, por elas e por um discurso que se queira sagrado. Pelo nosso espírito. Juntemo-nos e optemos por um pouco melhor: qualidade ou espessura, respeito pela vida, suas necessidades, sua interioridade.
Lisboa, 7 de Setembro de 2011
Rita Clemente
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