Duran Clemente Uma história de vida? Difícil fugir ao destino.
Uma história de vida pouco conhecida? Pede-me Jerónimo Pamplona um solitário depoimento meu, para este seu brioso livro que, antes de mais, merece o nosso aplauso e sinceros parabéns pela sua cruzada e profundo empenhamento. Difícil é negar o pedido que me é feito, em tempos que sinto pouco entusiasmo a escrever; talvez mesmo sem vontade com tantas interrogações e inquietações sobre um passado vivenciado, um presente que se escapa (lá vai) e por um futuro augurado, não andando nas nuvens, “sendo realista, desejando o impossível” -Maio de 68-e tendo muito orgulho na Revolução do 25 de Abril, onde fui influente activista «a grande história de vida»!
O Portugal quando nasci (em 1942) ainda estava a “desentalar-se” de duas guerras mundiais, era pseudo-dono de colónias de dimensão vinte vezes maior que a sua, afastado da ajuda de planos internacionais piedosos ou de dádivas externas(?) venenosas…
O Portugal da Republica (1910) tinha uma taxa de analfabetismo da ordem dos três quartos (75%- Wilkipédia) da sua população e mesmo chegando a meio do século, ou mesmo nos anos 60 ou 70, todos os índices de desenvolvimento económico e cultural eram ridículos face aos da restante Europa Ocidental: sector industrial irrisório, comércio débil, agricultura caseira com fogachos ,escolaridade -escolas e colégios- nos mínimos, assistência médica escassa . No que “fala” todos dias com cada um de nós além dum analfabetismo vergonhoso, só cerca de 35% das nossas casas tinham electricidade, mais de metade não tinham água nem saneamento, a mortalidade infantil era de 38 (trinta e oito) por mil(dados referentes a 1973). Ditadura, PIDE, censura, descriminação, perseguições políticas, repressão frequente de estudantes e de gente culta, colonialismo e guerra colonial, resistência fora e dentro…enfim, um país “amordaçado”.
Uma história de vida de qualquer um de nós e do nosso tempo está irremediavelmente ligada às circunstâncias do país, desde a nossa nascença até hoje, e passam mais de setenta e cinco anos. Por isso mesmo, ainda em 1974, a cauda da Europa Ocidental era uma vizinha nossa qual sentinela : polvo tenebroso de politicas caseiras submersas e iníquas.
Sei, querido amigo, que talvez não quisesses polémicas nestes depoimentos já por si espúrios à tua verve .A responsabilidade é repartida já que ousaste escrever -com inabalável coragem e digna intenção- sobre a Escola que nos formou (ou mesmo formatou),não só numa época do país que tenho descrito, como entre as nossas idades marcantes, da pós-infância à pós-adolescência ou, dito de outra forma e como referência, entre os nossos 10 e 18 anos do caminho na vida, fardados de soldadinhos com espingarda ao lado ou ao ombro para, mais tarde fazer guerra, seguindo o “cativante” provérbio latino “si vis pacem ,para bellum” ou seja ”se queres a paz prepara a guerra”. Enganados? Não.
Como já referido pelo autor o IPE, Instituto dos Pupilos do Exercito, (o “Pilão”, na nossa gíria) aparece num contexto especial do país republicano para tapar falhas estruturais na cobertura nacional escolar primária e secundária[MD1] relativamente a filhos de militares de escalões mais baixos. Por isso desta escola, hoje centenária, têm as gerações dos seus alunos (e de seus outros arquitectos ) histórias e mais histórias de vida “pilónica” e de vida real bastante diferentes. De 1911 à data de 2018 o IPE teve vinte e oito (28) directores. Na minha frequência tive três sendo que a média da sua estada é de dois, três ou quatro anos, exceptuando o saudoso director recordista com 13 anos ,o Director Coronel Ferreira Gonçalves (antes já sub-director no nosso tempo) e que ficou lembrado por ter proibido os cadeados nos armários individuais, meio-antipático mas integro defensor da responsabilidade, ainda mais vincada, em cada um de nós, de camaradagem firme e de sentido sério do dever de estudante e de militar em crescendo. Enfim…um reformador do IPE.(Dados estatísticos do livro IPE-1911-2011,David Pascoal de Melo, pag 124).
Mas indo ainda à nascença do Pilão e reproduzindo as notas do livro antes citado (nota 80,pag 311)”Recordemos que (o general) Correia Barreto colaborador de Teófilo Braga e com apoio da Carbonária …que além de franco perfil militar, não respeitava os compromissos militares de honra e fidelidade implícitos na carreira que abraçara, aquando da sua frequência na Escola do Exército. Escandalizava os outros militares…e tomaria a sua máxima expressão na republicanização que Correia Barreto e os ”jovens turcos” (*) realizaram entre 1910 e 1915 politizando o Exército ,actividade nunca antes pensada para a Instituição Castrense.”
Talvez este movimento tenha alguma paternalidade na criação da nossa Escola.
Pediu-me o autor uma história minha, pouco conhecida. Ao saber das características do General Correia Barreto e da sua insubmissão (que também conduziu em 1911 à criação da nossa Escola) vem-me à ideia a minha história de rebeldia na Academia Militar em 1962, cadete do primeiro ano depois de sair do Pilão onde neste fui Comandante de Batalhão no ano de 1961, o das bodas de prata (50º aniversário do IPE).
A História,com duas partes. Um mês depois de ingressar na Academia Militar sou chamado pelo comandante da Companhia Escolar. Sorridente e com um documento na mão diz-me “temos aqui um jovem militar valoroso, é uma honra para a Companhia”. Tinha uma comunicação dos Pupilos do Exército solicitando a minha presença para em cerimónia próxima receber do P.R. os prémios que tinha direito do ano transacto. Era habitual todos os anos na abertura solene de aulas realizada, com pompa e circunstância, normalmente em Novembro. ”São muitos prémios” dizia o capitão, acrescentando “tem de pedir uma farda nº1 emprestada, não pode ir à paisana. Grande honra.” De facto os prémios eram o culminar de uma frequência de 8(oito) anos -duração dos cursos (técnico e liceal) - em que nunca reprovei e por ter estado seis anos seguidos em 18 (dezoito) períodos escolares no Quadro de Honra fora distinguido com um Prémio de Honra, condecorado com a medalha de ouro de habilitação literária e destacado com outros prémios diversos incluindo o da APE. No plano da organização interna, entre alunos, fora Comandante de Secção, Comandante de Pelotão e Comandante de Batalhão, sucessivamente nos três últimos anos e chefe de turma seis anos seguidos desde o terceiro.
“A Escola, o Pilão nos tornou adultos e diferentes”…” mais que falar dos laços que nos uniram, como companheiros será senti-los nos encontros/desencontros de que somos protagonistas quer durante a frequência no Instituto quer já como ex-alunos.” “Às dificuldades ou à dor do companheiro do lado nunca ficámos indiferentes.”” Efectivamente foram as dificuldades (estas e a superação dos obstáculos) vividas num meio ambiente muito particular que nos tornaram mais amigos e solidários e também mais fortes.” “Cada Pilão, à sua maneira, na concretização de pequenos ou grandes feitos, numa caminhada começada nos «nossos claustros» e estimulada pelo nosso «Querer é Poder» só pode ter sido obreiro, e foi-o ou é, na construção duma sociedade melhor. (Citação de excerto do meu depoimento no livro 100 anos,100 escritos IPE/APE,Nov.2011).Por isso e para elogiar o Instituto não podemos deixar de condecorar “com medalha de honra” todo e qualquer dos seus alunos(**) ao longo dos cem anos por terem sabido construir e honrar os pergaminhos gratos à escola que escolheram ou a ela foram conduzidos.
Tinha ido para a Academia Militar com pouca vontade de seguir a carreira das Armas. Fui pressionado pelo meu pai militar. A explicação dou-a 11(onze) anos depois, em Abril de 1973, em manifesto que escrevo à Hierarquia já com consequências de irreverência politico/militar.
Não posso esconder que os tempos vividos na Academia já eram outros. Comprometiam-nos outras responsabilidades perante o país amordaçado. E começou em mim a construir-se a ideia de que não era nem este país nem esta vida que queria abraçar. O país iria mudar significativamente 12(doze) anos depois. Quanto a mim, eu iria «saltar o muro» num Maio de 1962 das instalações da Academia, na Amadora, numa noite de denso nevoeiro. Fugi para perto de Sagres sonhando com outras naus: ser castigado (q.b.) o suficiente para ser expulso.
Foi o meu querido pai, assustado, que me encontrou, ao fim de quatro ou cinco dias; deu-me a maior reprimenda do mundo e trouxe-me de táxi para a Amadora .O general comandante da Academia quis ter uma conversa comigo e levou o caso para um acto de paixão “amorosa” (já que eu tinha resolvido ir acompanhado com uma namorada).Depois de longo discurso sobre os «desvairamentos passionais» (segundo ele) acabou por me dar uma sanção que não atingia os limites, tendo levado bastante em conta o bom comportamento anterior e o meu passado de bom aluno e militar no Pilão. Ainda rebati argumentando como pude, mas nada. Moral da primeira parte da história: o General foi advertido de que o melhor era eu integrar os candidatos ao concurso literário entre Academias Militares Portuguesa e Espanhola que se realizava de dois em dois anos. Constava que eu sabia escrever.Assim fui convidado/obrigado pelo próprio comandante. O tema principal era «Camões e Cervantes, “o homem, a obra e a época”» respectivamente para cada lado. Os debates sobre as duas figuras literárias iriam realizar-se em Saragoça -na Real Academia Militar Espanhola- em Novembro.
Passei, sob o ponto de vista escolar e formação militar, a ano lectivo. Em trinta cadetes só passamos sete, no meu curso especial de Administração Militar. Muitas das noites das férias grandes as fiz a investigar e a escrever sobre Luís de Camões. A minha namorada (da fuga inglória) dactilografou o texto.
Segunda parte da história. Com surpresa de todos (e até minha) fui o vencedor deste concurso no tema principal. O que costumava ser quase sempre prémio para alunos de Engenharia coube com orgulho e vaidade a um Pilão de Administração. Tudo correu muito bem por terras de Espanha e o mesmo General comandante que me castigara antes atribui-me um copioso louvor seis meses depois pela qualidade e brilhantismo dos escritos e das intervenções em terras de “nuestros hermanos” por Saragoça, Huesca, Madrid e Toledo que visitamos, como sedes de especialidades de formação académica militar.
Acabaria por concluir os quatro anos de curso. Fui primeiro classificado do meu. Esperei demasiado , para mim, pois só em 1969 fui obrigado à primeira comissão colonial/Moçambique. Mais tarde por ter escrito, como já referi, um manifesto em 1973, quando já empenhado e comprometido com a oposição ao regime, acabei “castigado”(sem publicidade) e forçado a ir para outra comissão na Guiné. Tive a oportunidade de, com outros capitães, forjar a “Alvorada da Revolução” de 25 de Abril.
Voltei a fugir, com sucesso, na sequência dos acontecimentos dum nebuloso «25 de Novembro de 1975». Encontrei-me na posição de exilado do meu país e dos meus familiares e amigos, apesar de, em pouco mais de 10(dez) anos de oficial militar, ter sido agraciado com a medalha da Ordem Militar de Avis (Cavaleiro)e a Medalha de ouro da CruzVP, ter tido 5(cinco) louvores de Oficial General e outras distinções. Profissionalismo e dedicação puros, abnegados em honra do espírito nascido/crescido no Pilão, presente e mantido até hoje, nas ondas que o mar faz e delas cantam o amor à vida real que quis vincar em luta com as contradições desta sociedade.
Até hoje. Até sempre.
Regressei oito meses depois e fui bem acolhido pelo meu país e suas gentes que nem sempre se deixam toldar ou manipular completamente.
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Das histórias (ou meias histórias de vida), quer mesmo no Pilão e amigos vizinhos (Casas da Fronteira e Alorna e outros) e o que desde 1961, o sulcar da vida me trouxe, ficam quase 60 (sessenta) anos por contar. Outras histórias, noutros depoimentos, tenho contado e o farei com o coração aberto á fidelidade de ser honrado Pilão, disfrutando a alvorada da casa bela e ridente, que sempre teve por lema seu: QUERER É PODER!
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Manuel Duran Clemente, coronel do SAM ref. Ex.aluno IPE- 30/1953
O autor não respeita o A.O.
(*)”Jovens turcos”-expressão oriunda da Turquia grupos ou facções que reivindicam agressiva ou impacientemente reformas no interior de uma organização, lutando contra o conservadorismo instalado da velha guarda para impor uma nova visão, mais moderna e renovadora.
(**)Alunos e alunas uma vez que estas passaram também a ter acesso depois do 25 de Abril.
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