CAPITÃES/MFA- A CONSPIRAÇÃO NA GUINÉ
A ideia lançada de que a “revolta dos capitães” começou na Guiné não merece
discussão. Têm tanta razão os que a defendem como os outros. A revolta começou
em cada um de nós, o espaço não foi temporal nem fisicamente circunscrito a uma
qualquer latitude, mas de facto a Guiné marcou muito os militares e era
ressonante o seu efeito como um vulcão de conflitos e desafios.
Efectivamente na Guiné viviam-se tempos favoráveis à reflexão e ao
debate. De forma mais aberta ou mais reservada a contestação convivia com
a humidade e o calor tropicais. Seria injusto não reconhecer a quota parte que
se deve à personalidade do General Spinola na criação desse ambiente. As
circunstâncias fizeram o resto; tornaram a colónia da Guiné um laboratório de
experiências e de vivências particulares. Muito pelo seu clima, muito
pelo seu tamanho, muito pelo abandono do colonizador e bastante pela forma de
actuação do PAIGC e do seu líder Amilcar Cabral.
Talvez se deva considerar, como primeira pedrada no charco, na Guiné-
Bissau, a reacção e repudio dos Oficiais do Quadro Permanente ao “
Congresso dos Combatentes do Ultramar”. Almeida Bruno, Dias de Lima, Monge,
Otelo e outros, puseram ao corrente o general Spínola do descontentamento que se
apoderou dos Oficiais em geral. Tratava-se dum Congresso, que mais não era do
que uma encenação do governo com o aproveitamento de antigos oficiais
milicianos, que desde 1961 haviam cumprido comissões militares no Ultramar.
Esse descontentamento chegou a Lisboa pela via hierárquica mas não só. Chegou
também a Ramalho Eanes, Hugo dos Santos e a Vasco Lourenço, que encabeçavam na
Metrópole, um vasto movimento de protesto.
Quatrocentas assinaturas de Oficiais do Q.P., assinaram em Bissau, protesto
idêntico ao ocorrido no Continente.
Um telegrama de Bissau foi enviado para o Porto, onde se realizaria o dito
evento (de 1 a 3 de Junho de 1973) assinado por Marcelino da Mata e Rebordão de
Brito ( Oficiais naturais da Guiné, ambos com a “Torre e Espada” ) com o seguinte
texto:
“ Os oficiais do Q. P. Em serviço no teatro de operações da Guiné:
1. Não aceitam outros valores nem
defendem outros interesses que não sejam os da Nação;
2. Não reconhecem aos organizadores do
I Congresso dos Combatentes do Ultramar, e portanto ao próprio Congresso, a
necessária representatividade;
3. Não participando nos trabalhos do
Congresso, não admitem que pela sua não participação sejam definidas posições
ou atitudes que possam ser imputadas à generalidade dos combatentes;
4. Por todas as razões formuladas se
consideram e declaram totalmente alheios às conclusões do Congresso,
independentemente do seu conteúdo ou da sua expressão.”
A este propósito no seu livro “Alvorada em Abril” é com oportunidade que Otelo
afirma a pgs. 114: “ Esta autêntica manifestação colectiva poderia ter
constituído um sério sinal de alerta para o Regime “ que
conclui o parágrafo dedicado ao Congresso, dizendo ainda “ os jovens
leões rugiram, mansos, a princípio. Ganhando consciência da sua força, foram
deitando as garras de fora e, rugindo mais forte, lançaram-se ao ataque. A
partir daí, quem poderia realmente travar o seu desenfreado galope? “
Estava pois criado o ambiente e lavrado o terreno para o que viria a seguir.
Cheguei a Bissau a 28 de Julho de 1973.Fui enviado para lá por
"castigo" em reacção ao requerimento/manifesto que fizera em Abril e
entregara à hierarquia militar e espalhara em Aveiro no Congresso da Oposição
Democrática!!! Com oficiais de Engenharia (eu era Chefe de Contabilidade da
DSFOM/Engenharia) já tinha começado a conspirar em Lisboa!
***
O meu companheiro de viagem e de lugar no avião, que então me levou para a
Guiné , foi o Capitão Piloto-Aviador Pinto Ferreira.
Ainda que contemporâneos na Academia Militar (1961/64) já não nos víamos há
muitos anos. Fixava-me com olhar inquieto. Estava do lado da janela e nunca
olhou o céu. Regressava após meses antes, ao seguir atrás do “Fiat” do seu
comandante, Ten.Coronel Alves Brito, assistir ao desintegrar do avião em
estilhas e chamas. Escapou porque ao ver o reflexo, de algo vindo do solo,
guinou instintivamente o seu “Fiat” (avião-parelha) que conduzia. Foi isto
que me contou, acrescentando em desabafo: “vai ser difícil esquecer”!!!
***
Na noite do dia seguinte , à minha chegada, reunimo-nos no Agrupamento de
Transmissões depois de jantar. Consta do registo das presenças os
seguintes nomes e especialidades dos militares reunidos. Capitães do quadro:
Jorge Golias (Eng.Transmissões),Duran Clemente(Administração Militar),Matos
Gomes (Comando),Jorge Alves(Eng.FA). Capitão miliciano J. Manuel Barroso
(sobrinho de Mário Soares). A reunião moveu-se pela curiosidade em ser lido um
documento (exposição/requerimento) que eu tinha feito à hierarquia militar ,com
40 folhas de papel selado, e que pelo seu teor de manifesto contestatário (e
pelo facto de o ter distribuído em Aveiro, em 8 de Abril, pelos congressistas
da Oposição Democrática, onde estive)tinha contribuído para
levar o pontapé até Bissau.
Estávamos muito preocupados com a situação nacional e com o uso dos
oficiais do Q.P. (Quadros Permanentes).Tínhamos a noção de que estes estariam a
tomar consciência, missão após missão, do logro. Mas era lento e doloroso o
processo. Combinámos criar um núcleo. Este que passarei a designar por “núcleo
dinamizador” (A . Spínola uns anos mais tarde apelidou-o de “célula soviética”
no seu Portugal sem Rumo) nunca mais se desintegrou e
funcionou curiosamente até ao dia da liberdade. Constituiu nossa prioridade
editar um documento a distribuir por todos os oficiais das FFAA, no sentido de
os sensibilizar, para o que se estava a passar , nos mais diversos aspectos e
sectores da vida do país. Distribuímos tarefas. Cada um encarregava-se de uma
matéria especifica. Ficámos, de numa próxima reunião, reflectir sobre a
forma de fazer chegar a informação aos Camaradas militares, Oficiais do Q.P.,
onde quer que se encontrassem, nas Colónias ou na Metrópole. “Como obter os
endereços de todos?” era o desafio.
Não foi preciso.
Graças à publicação do celebérrimo Decreto-Lei nº. 353/73 que facultava a “entrada
de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente através de curso
intensivo na Academia Militar” os acontecimentos precipitam-se. A questão
era saber aproveitar o facto. Assim nos propusemos como núcleo dinamizador e
agora fortemente animados. Não podíamos perder a oportunidade.
A nossa segunda reunião foi toda ocupada pondo a criatividade ao serviço de uma
estratégia que efectivamente colocámos em andamento e não mais pararia.
Ainda ninguém conhecia bem qual era o conteúdo do referido diploma. Constava
que se aplicava às Armas operacionais de Infantaria, Artilharia e Cavalaria.
Só em meados de Agosto tomámos conhecimento do seu completo teor. Até aí,
bastou-nos adivinhar qual o seu espírito para que recebêssemos aquele brinde de
braços abertos.
Há que explorar com sucesso o” tremor de terra “ que tal diploma veio causar
sobre os capitães. E assim foi. O núcleo entrou em acção.
Promoveram-se reuniões. Espalhou-se a palavra para os Capitães reunirem na Sala
de Jogos do Clube Militar.
Confortou-se a “ convocatória “ com a adesão por solidariedade ( e não só) dos
Capitães que mesmo não pertencendo às três Armas atingidas, deviam comparecer.
Assim aconteceu a 17 de Agosto de 1973, sábado pelas 16.00.
No espaço de oito dias, efectuaram-se quatro reuniões. As três últimas,
realizaram-se no Agrupamento de Transmissões.
· ( síntese das reuniões em
anexo)
Resultou dessas reuniões a decisão de endereçar uma “carta-protesto” ao
Presidente da República, Presidente do Conselho, Ministro da Defesa e Exército,
Ministro da Educação e Secretário de Estado do Exército
Com a data de 28 de Agosto a referida carta teve as assinaturas de
quarenta e seis Capitães, recolhidas em Bissau e nas guarnições próximas (em 66
possíveis no todo do CTIG), às quais se juntaram ainda as de quatro
subalternos (em estágio) e foram enviadas, por correio registado, para os
destinatários a cinco de Setembro.
O então Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, pôs o seu serviço de secretariado em
marcha para a tarefa de bater a carta à máquina em “ stencil “ e de comunicar
aos Capitães em serviço no interior, o seu conteúdo e explicar-lhes a atitude
de protesto colectivo, como afirmação frontal do nosso
descontentamento.
Ficámos a aguardar a reacção.
O Almeida Coimbra iniciou então o contacto com Hugo dos Santos ( em Lisboa) de
quem passamos a obter informação sobre os acontecimentos na Metrópole.
Na sua primeira informação ficamos a saber que toda a actuação prevista em
Lisboa era fortemente tocada pela legalidade, pelo menos, aparentemente.
Esta (e todas as informações que iam chegando) foram lidas nas reuniões de
Capitães que começaram a realizar-se periodicamente e numa das quais, ainda em
Setembro, é eleita a primeira Comissão Coordenadora do Movimento de
Capitães na Guiné,constituída pelos Maj. Almeida Coimbra, Cap. Duran
Clemente, Cap. Matos Gomes e Cap. António Caetano ( que mais tarde seria
substituído pelo Cap. Sousa Pinto).
O núcleo preparou a reunião. Matos Gomes que tinha vindo a Lisboa trouxera ,no
regresso, alguns exemplares do recente livro de Sottomaior Cardia “Para uma
Democracia Anticapitalista”. Divulgámos boa parte do seu conteúdo e o
acto funcionou como campanha eleitoral. Valeu-nos a eleição de dois de nós
(M.Gomes e eu próprio) do referido “núcleo dinamizador” para a aludida
comissão.
Entretanto soubemos da reunião de Évora, (9 de Setembro) onde se encontraram
mais de 130 oficiais do Q.P. Ficámos mais confortados.
Foi deliberado que se desse conhecimento ao Comandante Militar da existência
das reuniões. Achou-se que era melhor que soubesse por nós próprios que nos
reuníamos. Formalmente avançamos motivos profissionais como justificação.
Ficou claro que só lhe era transmitido aquilo que se achasse conveniente. E
assim aconteceu.
Na primeira reunião e única que tivemos com o então Comandante Militar
Brigadeiro Alberto Banazol ( irmão do Ten. Cor. Luís Ataíde Banazol )
este saudou a atitude e deu-nos a devida autorização para reunirmos na
Biblioteca do Quartel-General,instalada fora deste, no Batalhão de Intendência
em frente (do qual eu era 2ºComandante) . Assim e sem querer
autorizou-nos a conspirar...contra o sistema.
Mas foi peremptório ao reprovar expressamente a nossa manifestação colectiva.
Referiu a nossa carta, enviada às mais altas hierarquias do Estado, censurando
o gesto.
Para mostrar aparente solidariedade connosco, foi ao ponto de nos convidar para
um jantar volante em sua casa. O que aconteceu com a comparência da esmagadora
maioria dos Capitães, então disponíveis em Bissau.
Tal jantar teve um final conturbado pelas intervenções acaloradas, de Otelo e
do signatário, não só porque, à evidência de que as “altas esferas” estavam a
deixar resvalar a Guiné, para um caso semelhante ao de Goa,Damão e Diu, o
Comandante Militar Brigadeiro Banazol respondia com evasivas e não
disfarçava aproveitar-se do gesto de anfitrião e de máximo superior hierárquico
( no Exército) para nos anestesiar e adormecer com a retórica habitual e com a
fundamentação oficial do regime.
A partir daí , o Comandante Militar nunca mais teve informações desta Comissão
Coordenadora de Bissau, mais por desinteresse seu do que nosso.Não consta que
se preocupasse muito com “ os ventos fortes “ que corriam. Talvez não nos tenha
levado a sério ou lá no fundo estivesse connosco, como ( até ) suspeitávamos.
Tanto assim é, que no próprio dia 25 de Abril, foi vitima de si próprio. Quando
soube dos acontecimentos continuou “ abraçado ao seu lazer “ na ilha de
Bubaque, não se apressando a retomar o seu posto em Bissau.
Atrasou-se em fazer o que alguns fizeram com boa dose de hipocrisia. Outros,
bem mais alérgicos à Revolução, acabaram por apanhar o comboio com todo o vapor
que o oportunismo ( e nós ) lhes permitimos. O Brigadeiro Alberto Banazol não
quis mostrar que estava do nosso lado e do lado do seu irmão Ten.Coronel
Luís Banazol.
***
Aliás curiosamente foi aquele (irmão) que me apresentou este, no último sábado
de Dezembro de 1973,a caminho da piscina do Clube Militar. Não me esqueço das
palavras então trocadas: “Você é que é o Clemente ? Há cá mais algum ? ”Esta
era a senha trazida de Lisboa. A minha resposta foi : “capitão só eu “. ”Então
é você. Trago indicações de Lisboa para lhe falar !!!” Reagindo ao meu
esgar, descansou-me: “...não se preocupe, aqui o meu irmão Brigadeiro é um
democrata”.
.
***
As cartas seguiram também para Lisboa, numa segunda via, levadas pelo Cap.
Ayala Botto (ajudante de campo do Gen.Spínola) para as fazer chegar aos
destinatários caso os originais se perdessem.
Convirá recordar que a 6 de Agosto de 1973 o Gen.Spinola regressara a Lisboa.
Fim de missão, inicio de outros voos. O seu lugar de Governador e de Comando
Chefe só seria preenchido em Outubro pelo General Betencourt Rodrigues.
***
Através dos camaradas que gozavam férias na metrópole, ou dos que a esta
voltavam por fim de missão (ou pelos que entretanto chegavam em início)
ou ainda através de correspondência, já com linguagem um tanto codificada, as informações
iam-se cruzando entre Bissau e Lisboa. O Hugo dos Santos passou a ser o “ Pedro
“ e outros heterónimos deram à luz, por precaução, mais tarde justificada.
A conspiração desenvolveu-se no sentido prioritário e fulcral de angariar o
maior número possível de “ adeptos para a causa “ e para a libertação.
Aguardavam-se instruções da “coordenadora” de Lisboa.
O trabalho de sensibilização e de informação foi sendo feito com método e
sistema. Os resultados iam sendo, a pouco e pouco, muito gratificantes, na
medida em que paulatinamente se foi conquistando para o nosso lado a maioria de
Oficiais colocados em posições ( de comando ) estratégicas e essenciais para o
que “desse e viesse”.
A Marinha aderiu em força. Com a sua tradicional organização ( meticulosa e
serena ) dispôs as suas pedras com todo o cuidado e aceitou o repto. Destacaram
Oficiais que passaram periodicamente a reunir-se connosco, para troca de
informações e análise da situação. Inicialmente os 1ºs Tenentes Marques Pinto
e Pessoa Brandão e mais tarde Manuel Serrano e Rosado Pinto.
A Força Aérea destacou desde sempre os capitães Jorge Alves e Faria Paulino e
depois Sobral Bastos e Albano Pinela (Paraquedista).
Em Outubro tive oportunidade de efectuar uma reunião com quatorze
oficiais pilotos-aviadores do Q.P., acompanhado de Faria Paulino.
Lá estava também o meu companheiro de viagem Lisboa/Bissau.O trauma da bola de
fogo do companheiro perdido estaria a transformar-se iluminando as
consciências.
Como é sabido as iniciativas da Força Aérea estavam praticamente paralisadas
depois de nos primeiros meses de 1973, seis aviões entre Fiat, T-G e DO 27,
terem sido abatidos, após a introdução de mísseis terra-ar ( os Strela), na
equipagem do PAIGC.
Nesta reunião com os Pilotos-Aviadores, ficámos com a sensação de que quase
todos, se não mesmo todos, tinham aderido ao Movimento,ou pelo menos, não lhe
eram hostis.
No Exército contavamos com mais aderentes à medida que íamos, progressivamente,
com maior segurança, alargando a malha de contactos e de informações e
consolidando as estruturas organizativas por cada unidade operacional.
Paralelamente um movimento de Oficiais milicianos, foi-nos acompanhando e ia-se
consolidando, tendo como principais mentores os Alferes Milicianos Barros
Moura, Celso Cruzeiro e o já referido capitão Miliciano José M. Barroso (
reflectindo efectiva e curiosamente três tendências diferentes ).
Os ânimos confortaram-se ainda mais à medida que da Metrópole iam chegando as
notícias da evolução do processo.
A partir de Dezembro começa-se a ver mais claro qual o sentido do Movimento,
após as reuniões que na Metrópole apontavam para a mais que provável decisão de
“pegar em armas” para derrubar a situação. A “profecia” que Jorge Golias
lançara como repto em Agosto(numa das primeiras reuniões)...”quem sabe se
isto só se resolve pela via armada!??”estava mais perto de se enxergar.
.
Também na Guiné foram conhecidas as três hipóteses, colocadas para reflexão
(decisão) aos Capitães na reunião de Óbidos em 24 de Nov.73, que eu
próprio trouxera após a minha deslocação a Portugal em Nov..
a. -Conquista do poder para com uma Junta Militar criar no país
as
condições que possibilitem uma verdadeira expressão nacional;
b. -Dar oportunidade ao governo de se legitimar perante a Nação
através de eleições livres, devidamente fiscalizadas pelo Exército, precedidas
de um referendo sobre a política ultramarina;
c.-Utilizar reivindicações exclusivamente militares como forma de
alcançar o prestigio do Exército e de pressão sobre o Governo.
Também soubemos a seu tempo do resultado do escrutínio.
Nele nos concentrámos para o correspondente apoio como retaguarda e reforço.
A decisão de que na Guiné também optaríamos pela tomada de poder
pelas armas já estava tomada há muito; daríamos no entanto a
possibilidade à hierarquia militar no Comando Territorial
Independente da Guiné /CTIG para se pronunciar. Quem não estivesse connosco
seria devolvido a Lisboa. No caso de insucesso das operações do Movimento em Portugal
a nossa estratégia era a tomada de poder na mesma. Teríamos esse trunfo para
jogar na defesa das nossas convicções. Por outras palavras,
constituir-nos-íamos numa grande pedra no sapato e dor de cabeça para o Governo
Português, com uma Colónia sublevada. Para isso, tínhamos de ter o
completo domínio do comando em todos os Sectores e Ramos das n/ FFAA,
instaladas no teatro de operações da Guiné. Iríamos ter.
No final do ano de 1973 só nos faltava o Regimento de Paraquedistas que virá a
aderir em Fevereiro de 74, após o conhecimento do conteúdo do livro “Portugal e
o Futuro” do Gen. Spínola.
O Comandante do Batalhão de Paraquedistas, Major Mensurado, manda formar
o Regimento. Faz uma palestra. Adverte os seus homens da eventual necessidade
de terem de cometer uma acção e indisciplina a “Bem da Nação”. Quem não estiver
de acordo deve dar um passo em frente.
Ninguém deu. Todos concordavam. Era a vontade dos Povos a mandar!
Mesmo assim, veio a Lisboa, com um nosso delegado do Movimento, perguntar
pessoalmente ao General Spínola se “avalizava” o seu procedimento.
Regressou aliviado e mais feliz.
E nós também, porque era uma unidade indispensável.
Antes, porém, tivemos de “travar” a ansiedade do Ten. Coronel Luís Ataíde
Banazol ( que aqui e hoje sempre prestarei homenagem pela sua atitude na
reunião de Cascais em 24 de Nov. 73 e de Óbidos, em Dez. ) que ao chegar à
Guiné com o seu Batalhão – que estacionou uns dias no Cumeré – antes de chegar
ao seu destino: Bambadinca, queria tornar o poder ocupando o Palácio do Governo
da Colónia.
Após aturadas reuniões connosco “ os jovens e pálidos Capitães da Guiné “, como
ele se refere num dos seus livros, conseguimos dissuadi-lo. Sobre isso o Jorge
Golias tem muito que contar.
Tive oportunidade, mais tarde, de lhe prometer que seria dos primeiros a saber
quando ganhássemos.
* *
*
E soube. No dia 25 de Abril, pelas nove horas – o meu subalterno comandante de
Destacamento de Intendência (Alferes Mota), sediado em Bambadinca( com quem
tinha ligação telefónica directa) foi dos primeiros a quem dei a noticia para a
retransmitir ao Ten.Cor.Luis Banazol : HOUVE REVOLUÇÃO: ganhámos.
* * *
Voltando aos primeiros meses do ano é de assinalar o seguinte e de forma
resumida:estreitaram-se os contactos com Lisboa.Em Fevereiro estive
pessoalmente com V. Lourenço na Trafaria, após ter vindo a Lisboa para receber
informações mais actualizadas. Tive oportunidade de referir que o pessoal na
Guiné estava com acentuado nervosismo. Vasco Lourenço apelou à serenidade e
afiançou que a “acção” se daria antes do 10 de Junho.Foi esse o recado que
trouxe então.
Em 4 de Março avisamos Lisboa ( Hugo dos Santos) de que os Majores Casanova
Ferreira e Manuel Monje regressavam à Metrópole no dia seguinte e estavam
cheios de entusiasmo. Denotavam extrema vontade de intervir. Haveria que dar o
melhor enquadramento à sua dinâmica.Otelo distraiu-se do meu aviso e ocorreu o
16 de Março…
Em finais de Dezembro anterior estes oficiais, com mais cinco oficiais
superiores, manifestam também adesão ao Movimento. Assinaram na minha presença
uma carta (por mim redigida) enviada ao General Spinola confortando a sua
decisão e colocando-se ao seu dispor na mudança.
Marcelo Caetano continuava nas suas conversas em família a tentar
convencer-nos de que se podia fazer turismo nas nossas “provincias
ultramarinas”,mesmo na Guiné!!!
O semanário “Expresso” publica excertos duma dessas conversas em família
lado a lado com retalhos do livro “Portugal e o Futuro” do Gen.Spínola.
No principio de Abril uma Delegação de Bissau esteve com o Movimento em Lisboa
e recebeu as últimas informações.
Na noite de 24 para 25 de Abril aguardámos no Centro de Comunicações do Quartel
General de Bissau o contacto telefónico programado. Não chegou. Uma das poucas
acções de retaliação da dita “Legião Portuguesa” foi o corte do cabo telefónico
na R.de S.Marçal que servia a Guiné.No meio da nossa ansiedade lá fomos sabendo
do que se passava através das agências noticiosas .Pouco a pouco as
teleimpressoras foram ditando os acontecimentos e noticiando a Alvorada de
Abril. Exultamos. Pelas oito horas da manhã foram restabelecidos os contactos
telefónicos.
As delegações do MFA constituidas por um capitão,um representante dos sargentos
e praças tomaram o comando de todas as guarnições militares afastando os
comandantes que não aderiram à nova situação.Estes embarcaram para Lisboa de
Avião poucos dias depois.
Propriamente no dia 25 de Abril,e em Bissau, quer o Comando Chefe quer o
Comando Militar, não tomaram posição de adesão ao Movimento. Com as unidades em
alerta, prontas a avançar, tais como: Batalhão de Comandos, Batalhão de
Paraquedistas, Batalhão de Intendência, Grupo de Artilharia e o Agrupamento de
Transmissões e de Engenharia e outras, avançou a Companhia de Polícia Militar,
que tomou pacificamente as instalações do Comando Chefe. Uma delegação do MFA
interpelou o Comando Chefe Gen. Betencourt Rodrigues, que entretanto reunira
todos os seus oficiais e aos quais se dirigiu “ vencido mas não convencido “.
Ficou à nossa disposição e com outros oficiais que foram seleccionados como não
tendo aderido ao nosso espírito, foram “ convidados “ a seguir, uns
dias depois,por avião para Lisboa.
O MFA colocou o Almirante Almeida Brandão como Comandante Chefe ( Interino ) e
o Major Eng.Tm Mateus da Silva, como representante da J.S. Nacional, até 7 de
Maio, quando chegou o T.C. Carlos Fabião.Este graduado em Brigadeiro passou a
ocupar o topo da hierarquia militar e governativa na ainda Colónia.
Tinha acabado a conspiração: outros desafios nos foram lançados. Sobretudo a
luta travada com o General Spínola que desde o 25 da Abril e até 28 de Setembro
quis abafar o MFA e impor-se como novo “ditador”.Foram as movimentações e
pressão do MFA [de Bissau] que contribuíram para um processo pacifico de
reconhecimento da independência da Republica da Guiné-Bissau e de transferência
de poderes em dois meses.
Nunca nos passou pela cabeça que no curto espaço de menos de seis meses as
NT(nossas tropas) deixassem definitivamente a Guiné-Bissau, como aconteceria a
15 de Outubro de 1974.
Manuel Duran Clemente,Coronel
reformado.
Anexo/ Síntese das reuniões de Bissau
1ª Reunião
Efectuada em 17/8/73,sábado pelas 16h00, no Clube Militar de Oficiais com
23 capitães
1. Foi lido o Decreto-Lei nº 353/73 e as alterações que
motivaram nova redacção
dos artigos 3º e 6º
.
2. Constatou-se que com a nova
redacção, relativamente aos capitães do Quadro Permanente das armas de
Infantaria, Cavalaria e Artilharia, a sua ordem na escala de antiguidade era
alterada com a introdução de Oficiais do Quadro Complemento.
3. Constatou-se ainda ,por outro lado,
que um curso superior(Academia Militar)de quatro anos era substituído por um
curso de dois semestres. Esta atitude do Governo foi considerada como mais uma
das que por sistema vinham desprestigiando os quadros permanentes das FFAA.
4. Decidiu-se que fosse escrita uma
carta protesto ao Presidente da República, ao Presidente do Conselho, ao
Ministro da Defesa e Exército, ao Ministro da Educação Nacional e ao Secretário
de Estado do Exército.
A inclusão do Ministro da Educação, nos destinatários, justificava-se
pelo facto já referido: curso superior igual a curso intensivo, tipo “curso por
correspondência” como alguém referiu.
5. Foi aceite que uma comissão de
oficiais apresentasse até às 14h00 do dia seguinte uma
minuta da carta. Ofereceram-se para escrever essa minuta o recentemente
promovido a Major Almeida Coimbra e os Capitães Joaquim Branco, Duran Clemente
e Matos Gomes.
6. Os oficiais presentes que não eram
das armas afectadas manifestaram a razão da sua presença. ”Estavam ali por
solidariedade e porque achavam que o cerne da questão não era apenas de
natureza corporativa. Se de facto o Decreto-Lei representava uma
machadada no prestigio dos oficiais oriundos da Academia pior ainda era a cegueira
política de quem governando o país “orgulhosamente sós” não dava as soluções
aos problemas quer na Metrópole quer no Ultramar”. Até quando estaríamos
dispostos a ser enganados.
7. Foi considerado urgente o envio da
carta cujo conteúdo deveria ser ,apesar de tudo, subtil.
8. Alguns mais legalistas e receosos
apelaram para que se criasse um grupo de advogados por forma a garantir-se
cobertura jurídica das atitudes de indisciplina que forçosamente ,face ao RDM,
se iriam tomar.
9. Foi ainda aventada a hipótese
de se estender a contestação aos oficiais superiores que o desejassem
fazer. Concluiu-se pela negativa pelo facto e se constatar que, após as
alterações no Decreto, os majores e tenentes-coronéis se teriam afastado e
desinteressado do protesto.
2ª Reunião
EFECTUADA EM 24/8/73,SÁBADO PELAS 14H00 NO
AGRUPAMENTO DE TRANSMISSÕES
1. Foi lida por um membro da mesa o projecto da carta.
2. Após algumas rectificações o
conteúdo da carta foi considerado pouco acutilante e
muito
suave. Alguns chamaram-lhe “carta de amor”. Venceu contudo o consenso.
Considerou-se que o mais importante era o efeito que iria ter a
manifestação colectiva.
3. Efectivamente sendo vedada a
manifestação, para além do que era permitido a cada um, teve-se consciência do
efeito que iria ter um documento assinado por mais de meia centena de capitães
em guerra.
3ª Reunião
EFECTUADA NO MESMO DIA, SÁBADO PELAS 18H30 NO MESMO
AGRUPAMENTO
1. FOI DISCUTIDA A QUESTÃO DO RISCO DA
ATITUDE DA “CARTA COLECTIVA” QUER PELOS DIRECTAMENTE ATINGIDOS PELA LEGISLAÇÃO
EM CAUSA QUER PELOS OUTROS QUE SE HAVIAM SOLIDARIZADO.
2. Voltou-se a
colocar a questão do apoio jurídico.
4. Acertaram-se aspectos práticos e
administrativos. O Capitão Otelo Saraiva de Carvalho ofereceu os seus serviços
de secretariado para “escrever e imprimir” a “stencil” a carta. Tínhamos de
obter cinco exemplares iguais e assinados.
5. Por outro lado ter-se-iam que
utilizar os meios mais expeditos para obter o maior numero possível de
assinaturas dos capitães. Fizeram-se conjecturas para a angariação de
assinaturas no mato.
6. Ficou assente que outras atitudes
se teriam que tomar a partir de então: relativamente a possíveis reacções por
parte dos destinatários e relativamente ao futuro .
7. Decidiu-se dar conhecimento do
envio da carta ao Comandante Militar.
8. Por alguns foi novamente colocada a
questão da carta não ser objectiva na reivindicação. Um dos oficiais presentes
declarou não assinar.
9. Outro dos presentes declarou não
assinar por não acreditar nos resultados da atitude.
10. Voltou-se à questão da participação dos oficiais
superiores. Decidiu-se que a seu tempo poderiam ser úteis se quisessem sê-lo.
11. No fim da reunião sobressaiu a intervenção de um capitão
que avisou para a hipótese ou eventualidade de terem as FFAA necessidade de
pegar em armas e actuarem em conformidade com o mal estar existente não
só na sociedade militar como na civil. Claro que houve numa certa minoria
alguma apreensão face a tal cenário. (A intervenção foi do
capitão Jorge Golias).
4ª Reunião
EFECTUADA NO DIA 28/8/73,QUARTA-FEIRA PELAS 21H00
NO AGRUPAMENTO DE TRANSMISSÕES
1. Foram obtidas as assinaturas da maior parte dos capitães (destacando delas alguns dos mas conhecidos após o 25 de Abril(*): Otelo S.Carvalho, Salgueiro Maia, D.Clemente, M.Monge, Sales Golias, Matos Gomes, Sousa Pinto …)e ainda de seis subalternos em estágio.
2. Foi decidido que se iriam realizar reuniões periódicas e eleger uma comissão que coordenasse as iniciativas em função do que se fosse delibe
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