3. “Vejo com inquietação o avanço da ignorância e da histeria” (parte final)
Nos anteriores capítulos falei do livro “Admirável Mundo
Novo” de A.Huxley .Hoje vou falar das
contradições do saber e não posso deixar de referir “A Rebelião das Massas” de J.Ortega
y Gasset…notável pensador “hermano”.
Li-o antes dos meus vinte anos assim como Garcia Lorca, Jorge
Amado, G.Garcia Marquez, Simone Beauvoir, Marguerite Yourcenar (esse imortal “Memórias
de Adriano”),A. Saint-Exupéry (a “Cidadela” e “Petit Prince”),John Steinbeck(“Ratos
e Homens” e a “25ª Hora”), Torga, Camilo, Herculano, Eça, F.Pessoa (Obra
Poética/ edição, em papel bíblia, de S.Paulo-1960 que me acompanhou sempre nas
viagens desde os meus 19 anos e ainda acompanha).Li outros calhamaços ou muito
pequenos em tamanho como o que dizem ser -o mais bem escrito, de sempre (?)- “A Crónica duma Morte Anunciada” de GGM. Também
li, escrevi e investiguei Camões, Cervantes e Bocage e até o Luso-Tropicalismo
de Gilberto Freyre. Isto nos tenros anos 50,60 e 70. Depois li muito mais como
é óbvio, nunca esquecendo Saramago e para mim o seu eterno “Levantado do Chão”.
Li bastante sobre geo-política e política, como entenderão. No meu exílio
–sabiam (?) fui exilado na R.P.Angola- até 09.Set.1976. Exilado por irmãos de
Abril e depois deste. Nesses seis meses,com o “frio” da tropical angústia –sem filhos e família -voltei a ler
o livro “Rebelião das Massas” que Edmar Edgar Vales , amigo assassinado no 27
de Maio de 1977,me havia emprestado. Fará algum sentido esta narração
apologética narcísica? Faz. Na sociedade e “mundo” ignaros de hoje … Só alguns
percebem como certas circunstâncias fazem sentido.
Acontece que em setembro passado numa entrevista que dei ao
Jornal do Fundão,à ultima questão que me foi colocada, ficou lavrada a seguinte
resposta.
Vejo com muita inquietação este crescimento dos
extremismos. Para mim o responsável é o sistema desumano, do capitalismo internacional,
que se instalou no globo, descurando a felicidade humana e jogando com ela
apenas por interesse material e lucro. A demagogia e o populismo manipulam os
mais desfavorecidos e descontentes. Saber mais e melhor é preciso para
distinguir oportunismos assaz perigosos…
Isto foi dito,
por mim, seis meses antes da invasão da Ucrânia. A nossa sociedade (a não
alienada e até a alienada) clamava por mal-estar permanente.
Nós os
portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar
da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns :
3.1.-Internamente: -*Reféns de uma cultura “de poder pelo poder” em
vez “do poder pelas pessoas, pelas nossas gentes”…
*Reféns pela mentira, pela manipulação, pelo “faz
de conta”…
*Reféns pelo angariar clientelas a todo o
custo…criando elites sôfregas por lugares ao sol…e que por aí vão propagando
formas de estar e de vivência nada condizentes com o espírito de Abril…
*Reféns de se fazerem de “ouvidos moucos” das
verdadeiras necessidades e ensejos do povo trabalhador…
*Reféns de acções constantes dum asfixiar das
responsabilidades cívicas e dos direitos de participação e da cidadania activa
que Abril abriu…
*Reféns,por muito que nos custe, do prodígio da
incompetência e da estratégia do suicídio…que o mais pessimista de nós nunca
esperaria após o 25 de Abril…
*Reféns da ilusão de alternativas salvadores mas
que apenas têm escondido o papel de afundadores do País de Abril, repetindo e
alternando a farsa a que se entregaram nestas cinco décadas…subvertendo na
prática as normas, os fundamentos e as linhas orientadoras da Constituição de
1976…e até querendo atribuir-lhe os males do País…
*Reféns pela incapacidade de desmontar uma
intensa ofensiva ideológica levada a cabo pelos órgãos de comunicação,
propriedade do grande capital, cujo objectivo tem sido criar condições favoráveis
à continuação da política dos poderosos…e à desqualificação da vida dos
trabalhadores…
*Reféns da corrupção, da apropriação, assalto e
esbulho aos bens, que supostamente deveriam estar ao serviço de todos os
cidadãos, mas têm servido para a criação de coutadas geradoras de lucros e
escandalosas remunerações e prémios anuais recordes do mundo …
*Reféns, pecado maior, do mando dos grupos
financeiros e económicos nacionais, a cuja subordinação, esta nossa democracia
já compete com os piores tempos da ditadura…
E, ainda mais , a nível global, éramos ou estávamos
reféns:
3.2-Externamente: -*Reféns duma débil e falsa
União Europeia (um gigante de pés de barro)para onde partimos (em 1985) apenas
com dez anos de democracia e com um estrondoso atraso estrutural económico
(herdado da ditadura) que só por si merecia, como muitos avisaram, outro tipo
de negociações, outras cautelas, leviana e festivamente, desprezadas…
*Reféns da incapacidade de fazer valerem os
pontos de vista nacionais, submissos à abdicação e imposição que nos
fragilizaram em sectores económicos vitais (como nas pescas, na indústria e na
agricultura…) entre outras malfeitorias semelhantes…
*Reféns ou aliados à cegueira de não perceber que
a crise internacional teve responsáveis…os mesmíssimos que agora a querem curar
à custa dos mais fracos e dos que são sempre sacrificados: quem trabalha e
produz…
*Reféns ou cúmplices da ignorância do que tem
acontecido aos povos que recorreram à designada “ajuda externa” que não é mais
do que um “eufemismo” porque significa tudo menos ajuda. É exploração, é
especulação, é ingerência…
*Reféns duma lógica de integração capitalista que
é o aumento da acumulação e concentração de capital dos grandes conglomerados
de empresas, dos monopólios dos países mais ricos e desenvolvidos que não só
engordam à custa do saque dos países do terceiro mundo, como também dos países
menos desenvolvidos da U.E….
*Reféns, pecado ainda maior, de não perceber que
as ditas crises financeiras resultam das crises do capitalismo e baseiam-se
sempre na sobre-acumulação de capital na esfera da produção. Não perceber que
perante as crises ou impasses o capital monopolista irá tornar-se mais
agressivo, predatório e sem escrúpulos, intensificando a exploração dos
trabalhadores. O objectivo é a redução do custo da força do trabalho…
*Reféns de não perceber ou ser cúmplices de que
nenhum pacto, mecanismo ou programa de estabilidade, poderá, só por si, debelar
a crise ou resolver as contradições do capitalismo, como ataque selvagem e
bárbaro do capital contra os direitos e vida dos trabalhadores, das camadas
populares e dos jovens… …
*Reféns de não compreender que com a continuação
das politicas e dos comportamentos ,que teimosamente o Capital impõe ( perante
o qual se têm vergado os responsáveis portugueses)…com a continuação dessas
políticas o desemprego, a pobreza, e as contradições entre os estados-membros
da U.E. irão aumentar, com graves consequências para os povos…
*Reféns de não entender que a escalada de ataques
antipopulares atingirá todos os estados membros da U.E, porque o Capital
Monopolista quer é reduzir o custo da força do trabalho, o seu objectivo
fulcral é reforçar a competitividade não só em relação aos EUA, mas também em
relação às forças emergentes como China, India e outras, com mão de obra muito
mais baixa… a questão dos défices e dos endividamentos pode ser apenas e tão
somente uma cortina de fumo…
Nós os
portugueses. É neles que me preocupa (nos preocupa) ver com inquietação o avançar
da ignorância e da hipocrisia. Ou não? Éramos ou estávamos reféns destes factores.
Milagre. Com a brutal invasão do capitalista “putinista”deixámos
de estar reféns? Ou,ao invés, ainda podemos ficar mais presos, mais pobres e mais
alienados?
O título do livro de J. Ortega Y Gasset engana os
ingénuos e incultos. Não trata da revolta do povo sacrificado. Trata do povo
massificado pela poluição corrente da atmosfera. Poluição igual a ignorância. Ignorância
igual a POPULISMO ou a pior. Hegemonia do obscurantismo, obstáculo do progresso
e da união cidadã para uma sociedade melhor, mais verdadeiramente igualitária e
solidária. Menos enganosa e hipócrita.
Viva Abril.
Manuel Duran Clemente
(Lisboa/Telheiras…13.03.2022)